''Euclides não teve tempo de e vingar a Hileia''

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Por Redação
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Em dezembro de 1904, quando Euclides da Cunha desembarcou em Belém, já havia lido vários relatos de viajantes e naturalistas sobre a Amazônia. Numa carta a Coelho Neto enviada de Manaus, ele cita o título do livro que pretendia escrever - Um Paraíso Perdido -, ''onde procurarei vingar a Hileia maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século 17''. Euclides não teve tempo para realizar essa vingança intelectual. Mas escreveu sobre a região vários artigos e ensaios, reunidos no livro Contrastes e Confrontos e na obra póstuma À Margem da História. Nos ensaios de À Margem da História, sua visão sobre a Amazônia é pendular: a natureza é portentosa, o clima é dotado de uma ''função superior''. No outro extremo do pêndulo, prevalece uma visão negativa, em que a natureza é destruidora, pois o caos, a desordem e a inconstância são fatores de degradação humana. Algumas frases, de forte efeito retórico, resumem sua visão: ''A natureza soberana e brutal, em pleno expandir de suas energias, é uma adversária do homem.'' O homem a que se refere Euclides é o forasteiro, não o nativo. Na visão do escritor, as sociedades nativas - índios e caboclos - são inaptas para desempenhar papel relevante no processo civilizador da Amazônia. Euclides se contradiz para tentar provar que aquele território é uma terra sem história. Em vez de se vingar ''de todas as brutalidades das gentes adoidadas que maculam a Amazônia desde o século 17'', ele recorre a essas mesmas crônicas e relatos do passado para afirmar que a raiz dos vícios da terra é a preguiça. Quem adquire relevância nos estudos euclidianos é o brasileiro que se desloca do Nordeste para trabalhar na Amazônia. São os sertanejos - parentes próximos dos conselheiristas combatentes de Canudos - que se encontram no centro das suas análises histórico-sociais. O ''caboclo titânico'' é o nordestino do sertão. O seringueiro, ''o homem que trabalha para escravizar-se''. Euclides escreveu palavras apologéticas sobre o seringueiro, pois este sobreviveu ao regime de trabalho semiescravo que lhe foi imposto e resistiu à natureza tumultuária e inconstante. Um herói de feição quase romanesca, cujos atributos são ''a força titânica, a vontade, a pertinácia, um destemor estoico e até uma constituição física privilegiada''. Se Euclides teceu uma visão distorcida sobre os caboclos da Amazônia, não se pode dizer o mesmo em relação aos índios peruanos e seringueiros brasileiros. A meu ver, um dos textos mais densos de À Margem da História é Judas Ahsverus. Nele, o olhar cientificista dá lugar a uma figuração das relações sociais, em que a imaginação, inspirada na experiência de quem de fato testemunhou a vida dos trabalhadores nos seringais, constrói um quadro melancólico durante o sábado de Aleluia, quando ''os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes''. Em Judas Ahsverus há um olhar sobre a história, a geografia, a religião e o meio socioeconômico, mas sem um narrador que pretenda enquadrar numa hierarquia de valores os seres de quem fala. O relato tende a ser menos explicativo e muito mais literário. O ornamento e a pompa da linguagem são atenuados por uma escrita sóbria, cujo conteúdo de verdade convence muito mais do que uma mistura de cientificismo com etnografia ingênua. Não menos relevantes são as duas páginas finais de Os Caucheros, em que Euclides narra uma visita a um posto abandonado, pouco acima do Shamboyaco. A casa principal, do seringalista, e as vivendas menores, dos empregados, estão destruídas, arruinadas pela ''mata que reconquistava o seu terreno primitivo''. Aí, de fato, a natureza se regenera, sem ser brutal ou perigosa. O que de fato é brutal e mesmo trágico é o destino do ser humano. Euclides e os membros da comitiva descobrem num dos casebres o último habitante do lugar: um índio. Não se sabe se ele pertence à etnia amauaca, piro ou campa. Com o corpo deformado pelo impaludismo, esse pobre-diabo foi abandonado pelos companheiros. O que impressiona nesse breve texto é como o narrador junta muitas coisas em apenas 50 linhas. Do ponto de vista literário e histórico, penso que é tão incisivo e sugestivo quanto algumas passagens da novela O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Um índio agonizante, abandonado numa tapera. Um corpo - uma coisa indefinível - que assemelha ''menos um homem que uma bola de caucho ali jogada a esmo''. O ser humano degradado se confunde com a mercadoria. Corpo e caucho, simbolicamente juntos, pertencem ao reino das ruínas, que não exclui a língua, pois a fala do índio agonizante é incompreensível. Rompida a comunicação, a única palavra em castelhano que ele consegue balbuciar é: Amigos. Para Euclides, essa palavra é dirigida aos ''desmandados aventureiros que àquela hora prosseguiam na faina devastadora''. Mas há uma terrível ambiguidade quanto ao destinatário da palavra balbuciada. Ela pode ser dirigida ao próprio Euclides e aos membros da comitiva. E por que não pensar que ''Amigos'' é uma palavra destinada também aos leitores? Nós mesmos, que estamos lendo este texto e ouvindo o eco dessa palavra balbuciada por um ''lastimável aborígine sacrificado''. Porque, mais de um século depois, nós também somos espectadores dessa realidade trágica, cujos protagonistas Euclides nomeia ''construtores de ruínas''. PERGUNTAS E RESPOTAS A ideia de sertão virou uma categoria analítica depois de Euclides da Cunha? Nísia Trindade Lima: Sertão é uma categoria nitidamente política e nunca denotou um espaço geográfico claramente definido. O médico e romancista Afrânio Peixoto dizia que ''o sertão do Brasil começa onde termina a Av. Central''. Referia-se à atual Av. Rio Branco, no Rio. Desde a colônia, o termo sertão é usado para espaços afastados do litoral que se caracterizariam por estarem distantes do poder do Estado. No século 19, o antagonismo litoral/civilizado contraposto ao sertão/ bárbaro é recorrente nos textos dos intelectuais. Portanto, não está nessa imagem a originalidade do pensamento de Euclides da Cunha. Da leitura de sua obra o que se revela é a ambivalência - em alguns momentos o sertão é visto de modo negativo, em outros como base para a construção da nacionalidade. O que confere originalidade ao pensamento de Euclides são essas mudanças de sentido. E, sobretudo, a proposta de pensar o Brasil a partir do sertão, um das ideias de mais força no pensamento social, na literatura, enfim, na cultura brasileira. O cientificismo presente na prosa de Euclides também aparece na poesia? Francisco Foot Hardman: É interessante notar algumas coisas. Nos manuscritos de Euclides que chegaram a nós encontramos fragmentos de poesias em talonário de anotações da Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo. Um caderno de exercício de cálculos de sua época da Escola Militar, do seu segundo ano, também tem alguns poemas interessantíssimos, como, por exemplo, o Cristo. Uma de suas versões saiu no Estadão em 1892. Outro poema tem uma variante também muito interessante. Primeiro é chamado de Álgebra Lírica; depois, Amor Algébrico. Euclides trabalha nessa ciência vã dos números, como imagem. A poesia surge, assim, absolutamente dentro do contexto das matérias que tinha na sala de aula. Outro comentário é que, no poema que escreve sobre a foto (Se Acaso Uma Alma se Fotografasse), ele tenta traçar uma espécie de autoironia, por assim dizer, com relação ao meio moderno presente naquele momento que é a própria fotografia. A ideia de ''paraíso verde'' impede que vejamos a Amazônia como ela é? Milton Hatoum: Claro, porque já cria uma expectativa, você já faz uma leitura prévia da região. Euclides caiu nesse conto do vigário. Essa visão de pulmão do mundo e outros grandes clichês escondem que na Amazônia as pessoas ainda morrem de malária, de leishmaniose. A fantasia cria mitos que ocultam a verdade. Você tem dar voz aos cientistas da Fiocruz, do Inpa, da Embrapa, do Museu Goeldi, gente que trabalha com pesquisa na Amazônia. Ouvir o que os ribeirinhos têm a dizer, o que o povo da Amazônia tem a dizer. Não se pode proibir a caça da tartaruga o ano todo, proibir as pessoas de comer. Tem que proibir a pesca por tanto tempo? No fim, Euclides disse uma coisa importante. Ele ficou tão enlouquecido com aquela grandeza, tão desarmado, que no prefácio do livro do Alberto Rangel, O Inferno Verde, escreveu que a Amazônia é tão grande, tão complexa, que é uma espécie de infinito que deve ser dosado. PALESTRANTES NÍSIA TRINDADE LIMA: Socióloga e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, é autora de, entre outros, Um Sertão Chamado Brasil (Revan) e Saúde e Democracia (FioCruz), além de organizadora, com Dominichi Miranda de Sá, de Antropologia Brasiliana (Editora UFMG). FRANCISCO FOOT HARDMAN: Professor do Programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, é autor de A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna (Unesp) e Trem Fantasma (Companhia das Letras), entre outros. MILTON HATOUM: Escritor e tradutor amazonense, escreveu quatro romances - Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado - e o livro de contos A Cidade Ilhada. Ganhou três prêmios Jabuti e um Portugal Telecom. É cronista do Caderno 2.

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