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Eterna luta pela autonomia feminina

Atração da Festa Literária Internacional de Paraty, a irlandesa Edna O?Brien confronta o conservadorismo e exalta James Joyce

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Por Ubiratan Brasil
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Foi em 1960 que a escritora irlandesa Edna O?Brien entrou para o seleto grupo de Nabokov, Kundera e Genet: o das vítimas da censura. Em seu caso, ela se viu obrigada a trocar a Irlanda pela Inglaterra depois que sua estreia literária, o romance The Country Girls, foi queimada pela comunidade religiosa local. Curiosamente, a trama sobre a busca sexual explícita de Cait e Baba tornou-a uma estrela. Afinal, era o início da década que pregaria uma vigorosa liberdade de costumes e Edna, cabelos soltos e olhos faiscantes, era a própria garota do pôster, aquela que traduzia o anseio de uma nova geração feminina que não se orgulhava de sua inexperiência sexual. Leia trechos de obras de Manuel Bandeira e de A luz da Noite, de Edna O´Brien Hoje, aos 78 anos, Edna O?Brien continua favorável à transgressão, tema de sua mesa na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, na qual se apresenta na sexta-feira. Lá, ela deverá ratificar a luta pela autonomia feminina no meio artístico - um dos assuntos de A Luz da Noite (tradução de Maurette Brandt, 384 páginas, R$ 49), romance sobre o devastador sentimento entre mãe e filha, que a Record lança nesta semana. Também vai exaltar um de seus mentores intelectuais, o conterrâneo James Joyce, cuja biografia escrita por ela foi publicada aqui pela Objetiva, em 1999. Assuntos que trata na seguinte entrevista, realizada por e-mail. Qual o papel do passado em sua obra? Em A Luz da Noite, usei uma citação de Faulkner como epígrafe: "O passado não está morto e enterrado. Na verdade, ele nem mesmo é passado". Para mim, é verdadeiro. Minha mãe, meu pai e todos aqueles que passaram por minha infância e adolescência ainda estão comigo. Tão vivos que parece possível falar com eles ou mesmo se afastar, o que poderia ser o caso. A mina de ouro para um escritor é a infância e suas lembranças, boas ou más. Na verdade, tristeza e conflitos não são um empecilho, mas uma pedra de amolar da palavra escrita. Sim, eu me lembro de tudo, a vontade do vento, as árvores de inverno e de verão, o carrinho de neve, asnos e cavalos selvagens trilhando nos campos. Lembro-me também das palavras, das grandes e pequenas pelejas e da religião com a qual fui alimentada, tal qual um ganso para produzir o foie gras. Rezo diariamente para a memória não me faltar. James Joyce foi uma grande influência em sua carreira - você até escreveu uma biografia sobre ele, na qual capturou o homem e o escritor. A influência de Joyce começou quando primeiro li um trecho de Retrato do Artista Quando Jovem em um pequeno livro amarelo compilado por T. S. Eliot chamado Apresentando James Joyce. Lendo a passagem do jantar de Natal na casa Dedalus, primeiro surgem a harmonia e a generosidade e, em seguida, a contenda, como o tema do sexo e política. Foi esclarecedor. Depois, li Ulysses e, como muitos, fiz minha derradeira tentativa de ler Finnegan?s Wake, sem pretender ser uma autoridade. Joyce tinha diversas montanhas para escalar: uma infância difícil, pobreza, as constantes mudanças da família, motivadas pelo descarrilamento das finanças, que quase os levaram para as favelas da zona norte de Dublin, onde ventiladores quebrados pendiam das paredes e os homens (forçoso dizer o pai e os filhos) brandiam com raiva e amargura, uma indignação alimentada pela ressaca. A mãe, no entanto, amava Joyce, tentando mantê-lo sob as rédeas da Igreja Católica, com a qual ele rompeu, ainda que sustentasse uma ligação primordial com a religião e sua busca pela salvação da alma. Em sua ficção, Joyce a matou, mas a manteve em sua memória. Há também a questão da linguagem de Joyce, deslumbrante, inovadora e, em certos aspectos, asperamente humana. Há uma ambição primordial: as técnicas de sua narrativa variavam do proeminente ao alucinatório, do sagrado ao pornográfico. O estilo de Ulysses é tão variável que seus 18 episódios poderiam ser descritos como 18 romances encadernados em um só volume. Algumas vezes, suas frases variam do tom lírico para a sensualidade. Minhas sentenças variam conforme meu material. Algumas podem ser líricas ou, como disse você, sensuais, como as linhas iniciais de Down by the River (Descida pelo Rio). O crescimento da linguagem é um dispositivo que tanto sugere a fertilidade como o estupro iminente da filha pelo pai. Em contraste, meu mais recente trabalho de ficção, um conto chamado Old Wounds (Antigos Ferimentos) publicado pela revista The New Yorker, é frugal e lacônico. Seu primeiro livro foi banido na Irlanda. Você ainda guarda algum tipo de mágoa em relação a isso? Sou e sempre serei uma autora irlandesa. Minhas raízes estão lá. Meu imaginário foi criado lá. Não é questão de patriotismo, embora eu me orgulhe de ser irlandesa. É como minha vida interior foi moldada por aquele lugar e aquelas pessoas, até mesmo pelos fantasmas. Os romancistas têm uma obrigação moral com seus personagens? Absolutamente não. Se assim fosse, não teria havido Tristam Shandy, ou Becky Sharpe, Drácula, Iago e muitos outros. O que interessa é o personagem adquirir vida na imaginação do leitor, ganhando carne, sangue, coração, alma, santidade, pecados. Quais desafios a senhora procura abraçar em sua escrita? Certa vez, encontrei-me com o cineasta François Truffaut, que me disse, em resposta à minha pergunta, que o que realmente o irritava era o fato de cada filme realizado representar, na verdade, um ensaio para o seguinte. Sinto o mesmo. Gostaria que meu próximo romance (ou conto, ou peça) fosse mais verdadeiro em todos os sentidos, o que equivale dizer que deve ser preenchido com uma vida infatigável, que a história deve ser universal, com palavras que provoquem reflexão. Em uma entrevista na Irlanda, fui questionada sobre o que as gerações futuras destacarão em minha obra. Respondi: sensações, sentimentos sobre o que nos afetam a vida inteira, como amor, ódio, religião, amizade, inimizade, remorso e morte. Sentimentos presentes entre os homens da caverna e que continuarão verdadeiros quando pisarmos em Marte.

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