Estarrecimentos de coluna

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

A frase da semana saiu da boca de um patético Agaciel Maia, ex-diretor geral do Senado Federal por 14 anos. Sua carreira liga-se à do ex-presidente da República e senador José Sarney, desde que o político maranhense, mestre nas artes de navegar em meio a tempestades, trovoadas, tufões e golpes deste Brasil que tem um lado aberto como um sanduíche de mortadela barato, e um outro fechado como um cofre bancário, ocupou a direção da ?Casa?, na primeira presidência de um Sarney colecionador de presidências. "Decisões foram referendadas por um colegiado; e eu sou o responsável?", disse - conforme leio em O Globo (do dia 13 do corrente) - um estarrecido ex-diretor, num rasgo de descoberta sociológica, revelador de um Brasil que conhecemos, mas que colocamos debaixo dos nossos tapetes. A frase-observação foi proferida como um comentário-defesa de Agaciel pelos 500 atos secretos usados pelos senadores para praticar aquilo que o republicanismo de botequim ou - com o devido perdão da expressão, mas não há outra - de merda que, em vez de colocar o governo (e o Estado-nação que ele representa como dimensão particular ou pessoal, pois é de fulano ou sicrano, neoliberal ou de esquerda como é o caso da administração Lula) a serviço da sociedade, faz exatamente o oposto, subordinando a sociedade aos seus desígnios sempre avessos ao republicanismo que deveria representar. Pois ser republicano é ter consciência da coisa pública e, portanto, situar-se como um instrumento e um meio da sociedade na realização dos seus fins e valores. Mas, entre nós, os poderes públicos agem sempre protegendo os que levam dólares na cueca e os que usam os recursos coletivos para os seus apaziguados, protegidos e partidários, pois se viramos a página do império, ainda não abandonamos o hábito aristocrático de personalizar os poderes dos quais somos temporariamente responsáveis. Donde essa incapacidade de não nomear apaniguados e de usar todos os recursos legais e regimentais (inclusive atos secretos) para ampliar os benefícios destinados a netos, primos, filhos, cunhados, e partidários em geral - hoje parte da grande família que governa o Brasil. Como todo bom brasileiro situado no alto da nossa burocracia, Agaciel Maia apenas revelou aquele rotineiro estranhamento sociológico de quem, finalmente, descobre a pólvora social que municia os canhões da amoralidade oficial brasileira. Refiro-me ao fato de que ele agora sabe mesmo com quem está falando! Os ilustres e probos senadores que dirigem e constituem o Senado Federal tiram o corpo fora e, usando aquele expediente que a República teve o mérito de inaugurar, dizem que a culpa - é lógico - é do funcionário! Como se eles não fossem responsáveis não por 5 ou 50, mas por - PQP - simplesmente 500 atos secretos usados para realizar favores e, mais uma vez, demonstrar compaixão, amor e sentimento de honra e fidelidade familística e patriarcal para com aqueles que fazem parte de seu círculo íntimo: a esfera de suas casas-grandes que, pelo visto e contrariando a ótica topográfica de mestre Gilberto Freyre, não acabou com o advento da República de 89 ou foi substituída por sobrados, mas continuam fortes e poderosas, sempre prontas a admitirem novos parentes, amigos, compadres e sócios. A surpresa de Agaciel desenha uma parábola. Trata-se da narrativa do um todo-poderoso situado naquela zona preferida do mundo público nacional. Uma região sem definição precisa de responsabilidade. Tal como os senadores que o nomearam diretor, mas, por isso mesmo, nada teriam a ver com 500 atos secretos que, por definição, desafiam qualquer pensamento liberal, democrata, socialista ou populista, pois ser republicado é pensar na coisa que pertence a todos e, por definição, obriga-se a transparência. Mesmo sendo um craque da burocracia político-pessoal-carismática do Brasil, a frase de Maia, tentando sair do embrulho, revela com toda a luminosidade o nosso gosto pelas coisas ambíguas, pelos atos imorais, pelas éticas dúplices que dividem o governo (eleito e pago por nós) e a sociedade em geral, que não é sua beneficiária, mas sua vítima. Esse é mais um episódio vergonhoso da nossa história republicana. Pois envolve o Senado e exemplifica que mesmo ali, naquela instituição de democracia e exemplo de moralidade pública, é necessário rediscutir a questão fundamental da responsabilidade institucional. Pois se o Senado como uma casa do povo não tem dono e não é dos senadores, então ele é a residência da mãe Joana. Estou farto do dilema brasileiro entre Estado forte ou fraco o que, no fundo, significa simplesmente mais estadofilia, estadolatria e estadopatia. Mais controle da sociedade pelo Estado, pela sociedade, quando - final de contas - os seus empregados (do presidente da República ao mais humilde vereador e servidor) são empregados dos cidadãos que, livres e iguais, os elegem e pagam com o fruto do seu duro trabalho. Ainda preciso saber com clareza, que até hoje não tenho certeza, se é a sociedade que serve ao Estado ou se deveria ser - eis a revolução! - justamente o oposto. Em outras palavras, preciso de um "ponto pergunta", como ocorria nas estradas de minha meninice. Uma parada na qual podiam orientar-se sobre que rumo tomar na viagem.

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