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Escuro e sombra, mas o corpo reluz

Precisão e densidade dominam Procurando Schubert, de Fabio Mazzoni, e Adverso, de Diane Ichimaru e Confraria da Dança

Por Crítica Helena Katz
Atualização:

Fabio Mazzoni procura Schubert porque Schubert, para ele, é inalcançável. Seu espetáculo mais recente, um segundo solo com Jacqueline Gimenez que batizou de Procurando Schubert, será apresentado hoje no 3º andar do Sesc Consolação. Com Jacqueline, já havia feito Amor Fati (2005), obra na qual a iluminação era feita por velas, iniciando a pesquisa sobre escuro e sombras que ganha uma formulação preciosa na nova produção. Nela, o escuro não é aquilo que desaparece quando a luz se faz. Deixa de ser um recurso da iluminação teatral para ficar parecido com o ar: está em toda parte e, sem ele, aquele mundo simplesmente não existe. Para sobreviver nesse mundo apresentado por Mazzoni, a visão deve se transformar em tato. No escuro quase total, o olhar logo aprende que lhe cabe começar a apalpar os volumes feitos de mais ou de menos escuridão. Não para tentar descobrir quais os objetos que o povoam, mas para aceitar o convite de adentrar em um espaço de tempos dilatados feito de sombras. O corpo de Jaqueline é tratado como um objeto dentre os outros. Ele, a mesa, ou a taça que não consegue sustentar a sua transparência e precisa se quebrar, tudo é escavado pelo escuro, que neles promove dobras e planos. A luz, sempre muito rarefeita, não é o seu contrário, mas um fenótipo dessa escuridão, que se estende anulando foras e dentros. Nesse mundo, a luz pertence à escuridão e nela se dá a ver. A escuridão pertence à luz e nela se dá a ver. Depois de se haver destacado na carreira desenvolvida no Grupo Corpo, companhia na qual se tornou uma das melhores materializadoras da dança de Rodrigo Pederneiras, Jacqueline Gimenez surpreendeu quando foi dançar com Adriana Banana, e agora confirma que a sua plasticidade adaptativa parece não ter limite. Sua habilidade em fazer de seu corpo somente reentrâncias e saliências do escuro impacta pela precisão e densidade. O que nosso olhar tateia são somente partes recortadas de um objeto-corpo que a escuridão vai construindo com tipos distintos de sombras. Um arco para trás, um cilindro-pescoço em primeiro plano, garras-mãos, um cano-antebraço, um boomerangue-omoplata: desproporções nascidas pela ação do escuro, que vai tornando tudo equivalente, sem se curvar à superioridade com que o corpo humano é habitualmente tratado. Humano e não humano se transformam em uma questão somente de diferença de texturas, como a que existe entre a parede e suas cicatrizes. Procurando Schubert tem direção coreográfica de Sandro Borelli, habitual parceiro do percurso de Mazzoni na dança, artista que transita com familiaridade pela sombra e pela escuridão. A sintonia que ambos vêm construindo encontra aqui um ajuste perfeito entre concepção e realização na forma de movimento. Escuro e sombra também são materiais de Adverso, o novo solo que Diane Ichimaru/Confraria da Dança estreou em São Paulo no último fim de semana. A proposta é diferente, e igualmente bem realizada. Nesse outro domínio, Diane reina. Intérprete de uma força e qualidade raras, adensa seus recursos a cada nova produção. Sutilmente, vai desenovelando mais timbres, e, com eles, povoa a sua cena com muitas vozes e diferentes personagens. Nos timbres ou nos gestos, o padrão de qualidade se repete: seus movimentos precisos parecem nascidos de uma obsessão pelo ajuste perfeito. Seu controle da mais ínfima inflexão ao gesto mais explícito revelam uma dessas muito raras intérpretes que dominam tudo o que se propõem a fazer em um palco. No seu quarto solo, ela se banha mais intensamente de literatura, e faz do verbal um tipo de corpo sonoro. As palavras parecem pretextos para serem trabalhadas em uma arquitetura sonora de texturas, na qual não importa tanto o seu significado. Porque há um jogo entre o que é e o que parece ser que vai amarrando tudo, desde a primeira cena, na qual Diane parece estar em uma caixa, presa e apertada nela. Mas, em seguida, o roteiro revela o engano da nossa percepção demonstrando que se tratava de uma construção da luz do espetáculo. A iluminação, concebida e operada por Marcelo Rodrigues, torna-se uma obra dentro da obra, de tão central na formulação de Adverso. É ela quem nos conduz, é ela que se transforma no roteiro e nos leva pelos ambientes que vão surgindo. Os objetos cenográficos vão se repropondo ao longo do espetáculo e a cada nova disposição espacial inventam outros sentidos para si mesmos. O figurino não é apenas concebido, mas também confeccionado pela própria Diane, ambos com um acabamento impecável. O rigor que permeia a escolha de cada elemento presente na cena e o modo como é nela trabalhado a confirma como uma das mais fortes intérpretes da dança brasileira. Ela e Jacqueline Gimenez, cada qual a seu modo e em um campo muito distinto, atestam a riqueza do campo da interpretação na dança. Que sorte a nossa podermos contar com profissionais desse quilate! Serviço Procurando Schubert. Sesc Consolação. Espaço Beta (46 lug.). Rua Dr. Vila Nova, 245, 3.º andar, tel. 3234-3000. Hoje, às 21 h. R$ 8. Último dia

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