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Entre pitos e psius

Por Roberto DaMatta
Atualização:

A primeira vez que tomei consciência do pito e do psiu como, respectivamente, reprimenda e forma de chamamento tipicamente brasileiras foi nos Estados Unidos. Estava com o professor Richard Moneygrand no clube da universidade e usei o clássico psiu brasileiro para chamar um garçom, o que me valeu um pito de Moneygrand. "Aqui não se chama ninguém desse modo, nem cachorro!" - asseverou-me ele seriamente, numa das poucas vezes que me deu aula de civismo igualitário. De fato, jamais ouvi alguém ser chamado com um psiu na América. Discorrendo sobre o assunto, Moneygrand ligou o psiu a um estilo de chamamento hierárquico, de um superior para um inferior. A outra vez que me defrontei com o psiu foi em Paris. Tinha acabado uma das minhas vias-sacras pelos gabinetes dos mestres franceses do momento e, num pequeno bistrô, situado entre a Rue des Écoles e o Boulevard Saint-Michel, onde ocorrem, como disse uma ocasião, as verdadeiras mitologias, um companheiro de mesa, bolsista profissional que fazia um interminável doutorado em sociologia e passava todo o tempo falando mal do Brasil, usou o psiu para chamar o garçom que, atento, mas aborrecido, nos servia. Até hoje me lembro dos bufos de ódio do homem que passou um pito, mas um pito em regra, no rapaz. Liguei um evento ao outro e me dei conta de que só no Brasil os subordinados ouviam e atendiam prontamente a esses nossos inocentes e famigerados psius que se confundiam com pitos. Teste que realizei na primeira oportunidade, pois mesmo em ambientes barulhentos, como restaurantes e bares, é provável que o garçom não ouça um chamado convencional, mas escuta de imediato o psiu. Do mesmo modo, um psiu mais veemente se transforma em pito. Seriam pito e o psiu sobrevivências da escravidão? Ou formas correntes de comunicação padronizada e intransferível, sinal de sua singularidade e manifestação de um viés hierárquico pouquíssimo discutido, mas tão bem estabelecidos socialmente que basta um psiu para convocar um desses nossos abundantes pisits, como diz o comediante Renato Aragão quando se refere aos párias e destituídos. Um passeio pelos livros mostra a sua antiguidade. John Luccock, comerciante inglês que morou no Rio de Janeiro entre 1808 e 1818, menciona no seu livro Notas Sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil que, quando uma pessoa visitava outra, ela batia palmas a fim de atrair a atenção; e emitia "uma espécie de som sibilante, colocando a língua entre os dentes, como se estivesse a pronunciar as sílabas tchi-uu". Quatro décadas depois, em 1856, Thomas Ewbank, no seu maravilhoso A Vida no Brasil, observa: "A maneira como os fregueses chamam os vendedores de sua casa é digna de nota e de imitação. Saem para a porta ou abrem uma janela e emitem um rápido som, mais ou menos como um xit - algo entre um assobio e a exclamação que se usa para espantar galinhas. É estranho - complementa - que tal chamado possa ser ouvido a grande distância. E que todos usem esse modo econômico e prático de comunicação." Essa observação minuciosa que os especialistas brasileiros em Brasil jamais realizaram retorna numa pequena passagem do famoso capítulo X de Sobrados e Mocambos, de Gilberto Freyre, como o modo tradicional de chamar escravos de ganho. Sabemos que o psiu é vizinho e pode ser confundido com uma reprimenda, imprópria para ser aplicado a um superior. Prova isso a reação do ministro do Supremo, Carlos Alberto Direito, que, conforme li n?O Globo (4-XI-07), teria registrado queixa contra um funcionário do Superior Tribunal de Justiça, do qual era magistrado, quando o subordinado chamou sua atenção com um indigno e habitual psiu. Neste caso, o psiu se confunde ao pito trazendo à tona o viés aristocrático do sistema, todo ele marcado por uma alta consciência de posição. Como um último exemplo, cabe mencionar o pito que o chefe supremo da nação, Lula, passou nos ministros da Agricultura e Meio Ambiente quando eles exprimiam suas discordâncias sobre temas de difícil resolução. O psiu e o pito são sinais de que uma pessoa mais poderosa (ou maior) engloba, contém (ou, em linguagem chula, come) a inferior ou subordinada; ou seja: tem a capacidade de situá-la debaixo de sua personalidade social. Esses pequenos gestos provam alguns dos meus argumentos, segundo os quais o Brasil ama tanto a igualdade e a democracia que rejeita psius; quanto a esses pitos e psius que requerem muito mais do que populismo amoral e ideologia obsoleta para serem domesticados. Pois, no fundo, eles permitem manter a autoridade pela autoridade, sem explicações, justificativas ou até mesmo o que se deseja. Haveria um modo mais rápido e eficiente de fazer alguém ouvir e calar do que um psiu?

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