Entre o esteticismo e o engajamento

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Por Luiz Carlos Merten
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Ator de rádio e cantor de tangos, Hugo Del Carril foi um apaixonado partidário do peronismo. Foi ele quem revelou ao mundo, em 1951, a existência do cinema argentino, com As Águas Descem Turvas. Passe agora para o Chile, em 1969. Miguel Littín baseia-se numa história real para realizar O Chacal de Nahueltoro, que vira tema de discussão - por sua denúncia do latifúndio - na campanha de Salvador Allende, por um governo de Unidade Popular. São dois clássicos do cinema latino-americano. Dois filmes que permitem discutir o engajamento de grandes artistas do cinema continental. Cinema e política na América Nuestra. Foi influenciado pelo neo-realismo - e baseado no romance O Rio Escuro, de Alfredo Varela -, que Hugo Del Carril expôs a brutal exploração a que eram submetidos, como se fossem escravos, os trabalhadores nas plantações de erva do Alto Paraná, nos anos 20. O ator e diretor não deixa de usar o cinema para doutrinar - o tema de seu filme é a união em torno do sindicato -, mas o domínio do espaço, da luz e do movimento alcança uma dimensão trágica, como não se cansam de dizer os historiadores do cinema argentino. Octavio Getino, outro peronista histórico - e parceiro de Fernando Solanas em La Hora de Los Hornos -, diz que o cinema de Hugo Del Carril era intuitivo, mas rico e profundo na sua temática da injustiça social. Se Del Carril fazia um cinema que tinha a cara do peronismo, Littín se tornou internacionalmente conhecido pela identificação que se pode fazer entre sua obra e o governo da Unidade Popular. Depois de dirigir O Chacal de Nahueltoro, ele fez, na seqüência, em 1971, Camarada Presidente, documentando um diálogo de Salvador Allende com Régis Débray para discutir alternativas políticas (e revolucionárias) para o Chile e a América Latina. O golpe de Pinochet lançou Littín no exílio, de onde ele voltou para inspirar um livro famoso de Gabriel García Márquez - As Aventuras de Miguel Littín Clandestino no Chile, em 1986. O Chacal conta a história de um camponês bêbado (e analfabeto), que mata a mulher e os seis filhos. Enquanto aguarda julgamento, ele aprende a ler e escrever, toma consciência da brutalidade de seu crime, converte-se ao cristianismo. Vira outro homem, um cidadão, dentro da cadeia. Mas a sentença continua correndo e ele é condenado à morte. O ''''sistema'''', baseado no latifúndio, o inclui somente para que seja transformado num homem de bem - e executado. A cena do infanticídio, quando o Chacal mata as crianças - filmada do alto, como uma dança demencial -, é uma das mais terríveis do cinema. Você não vai esquecer o ator Nelson Villagra, que faz o papel. Em seu livro Érase Una Vez en el Cine, da editora LOM, de Santiago, a crítica, professora e historiadora Jacqueline Mouesca diz que uma enquete internacional - mas não esclarece quando nem onde - apontou O Chacal como um dos dez melhores filmes do cinema latino-americano de todos os tempos. Outro programa atraente de hoje é Macario, do mexicano Roberto Gavaldón. Baseado num texto de B. Traven - o autor de O Tesouro de Sierra Madre -, conta a história de um camponês que faz um pacto com a morte. A crítica divide-se. Alguns críticos consideram o filme acadêmico e solene. Para outros, é a obra-prima fantástica do cinema mexicano. O recorte agora não é mais político. O objeto da discussão não é mais o engajamento. A fotografia deslumbrante de Gabriel Figueroa torna Macário um extraordinário testemunho do esteticismo do grande fotógrafo.

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