Entre alegoria e memória pessoal

Ao falar da guerra em Nos Penhascos de Mármore, Jünger deixa entrever sua relação com o 3.º Reich

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Por George Steiner
Atualização:

Os admiradores de Ernst Jünger, apologistas do elitismo de direita e da mística nacionalista que ele advogava nas décadas de 1920 e 30, saudaram Nos Penhascos de Mármore (Cosac Naify, 200 págs., R$ 49, tradução de Tercio Redondo) como antinazista. Foi amplamente propalado que esta fábula enigmática constitui o único gesto importante de resistência, de sabotagem interna, levado a efeito pela literatura alemã sob Hitler. O próprio Jünger mostrou-se mais circunspecto, e com boa razão. O retrato do monteiro-mor e de suas gangues de mauritanos é obviamente dirigido contra o nazismo. O próprio nome "Chiffon Rouge" evoca os estandartes vermelho-sangue erguidos à frente dos pelotões da SS em marcha. A narrativa de Jünger sobre os métodos de ameaça e de chantagem subterrânea, por meio dos quais a horda da floresta se insinua nas vidas cotidianas, e até nos sonhos de Marina e de Campanha, é um trabalho de observação política e de sátira de primeira classe. Seu relato da visita ao eremitério feita por Braquemart e pelo jovem príncipe de Summyra é fino e também profético. Nessa cena, provavelmente a mais sutil do livro, a impotência dos elementos tradicionais na sociedade alemã, a rendição ao oportunismo e o desespero elegante das forças que deveriam ter contestado Hitler são delineados a fundo. Mas nenhum esquema de alegoria política ou subversão se encaixa com exatidão. Mesmo a imagem bestial do Corno do Carrasco é menos incisiva ou direta do que pode parecer. A analogia com os campos de concentração, dos quais Jünger ouvira falar e que o deixaram bastante intimidado já em 1939, mas contra os quais ele jamais ergueu um clamor público, é evidente e clara. Mas o homenzinho que exercita o seu ofício de esfolador na clareira de Köppels-Bleek pertence menos ao repertório macabro do nacional-socialismo do que ao mundo dos malévolos ogros da saga escandinava. E como é enganosamente sentimental, como é destituída de furor genuíno a referência à "melodia da vida" que encerra a passagem. Belovar não pode ser associado a nenhuma posição política identificável. O que se pode pensar acerca do final da fábula? A despeito de todo o seu flagrante terror, a destruição de Marina suscita em Otho e no narrador uma reação altamente ambivalente. O espetáculo de devastação lhes parece repleto de uma beleza estranha e de algum modo justificado, ou pelo menos santificado, pela derrocada. (Ao refletir sobre a conspiração contra Hitler em julho de 1944, da qual se recusou a participar, Jünger se perguntou se convinha a uma nação escapar do seu destino trágico por mero acidente e pelo artifício de proezas individuais.) Conquanto em fuga para salvar suas vidas, os irmãos eleitos consentem, num nível incomodamente central, com o triunfo bárbaro dos mauritanos: "Não se constrói uma só casa, nem se traça um único plano que não tenha por pedra fundamental a sua queda; e não é em nossa obra que reside a nossa fração de imortalidade. Isto se evidenciou de maneira cabal naquelas chamas, mas também havia alegria naquele fulgor. Os nossos corações sentiam que no firmamento o fogo perdia um pouco de seu poder aziago - a aurora insinuava-se lentamente." Para os nobres seletos, há refúgio em Alta-Plana. A não ser por força de uma simplificação grosseira, como se pode ler esse desfecho nietzschiano, hierático, como um ataque ao hitlerismo, e ainda chamá-lo de resistência ativa? Embora escreva de um ângulo obviamente propagandístico, Helmut Kaiser, um dos críticos de Jünger da Alemanha Oriental, certamente não se engana quando vê na "mensagem" de Nos Penhascos de Mármore um desespero desdenhoso, quase vingativo. A vida de Marina não está condenada só porque as forças do mal da floresta são imensas e impiedosas. Não vale a pena preservar os valores humanísticos da vida nos vinhedos e nas cidades formosas. Seus alicerces foram minados pela decadência burguesa. Que o fogo heraclitiano purgue tudo. COERÊNCIA PESSOAL A verdadeira coerência da parábola de Jünger é pessoal. As serpentes que protegem o narrador são um cognato imediato das cobras órficas e literais (subordem ophidia, ordem Squemata) que obcecam as fantasias de Jünger, das quais seus sonhos, meticulosamente anotados, estão repletos. O irmão Otho faz as vezes de Friederich Georg Jünger, ele também poeta e naturalista. O padre Lampros tem o seu modelo visível no círculo de Jünger. Acima de tudo o retrato do narrador é, de modo pertinaz, autobiográfico. Tem o porte e o estilo de visão de Jünger. Também ele mora entre serpentes, flores e objetos antigos, nobres. É um soldado que faz da batalha um "rite de passage" para rincões ocultos do espírito. Sua morada interior é Burgunderland, um amálgama, parte histórico, parte emblemático, da latinidade alemã e francesa, que fascinava Jünger, como também fascinava Stefan George e E. R. Curtius. No nadir do Reich, Jünger ainda reunia outros Cavaleiros da Ordem de Pour le Mérite em cerimônias comemorativas, em Berlim. De forma semelhante, os sonhadores-guerreiros de Marmorklippen sugerem a sobrevivência de uma fidalguia oculta, para além do desastre em curso. Em muitos pontos, é difícil distinguir entre alegoria e memória pessoal. Em julho de 1943, por exemplo, o diário de Jünger alude a uma "misteriosa" visita de Heinrich von Trott, visita que supostamente se deu em 1938 ou 1939 e que tinha alguma relação com ações clandestinas contra Hitler; no diálogo com Braquemart e o jovem príncipe, aquela visita já está registrada. O conto de fadas de Ernst Jünger é tão frio e inerte quanto o seu título impregnante. Embora composto de frases curtas, características do estilo de Jünger, alcança a solenidade elaborada de um filme em câmera lenta. Nenhuma alteração de humor faz mossas na sua armadura brunida. O conto é transbordante de dor e violência. Todavia elas são vistas sob uma luz que se afasta. A batalha dos grandes cães de caça é uma das criações mais cruéis da fantasia moderna. O próprio narrador compara a cena com o abismo do inferno. Porém a nota dominante é de irrealidade, de imobilidade cerimoniosa, é como se todas as formas enlouquecidas, desvairadamente móveis, fossem imobilizadas na cadência pesada de um sonho. Onde já vimos aquela caçada assassina, o fulgor pomposo das lanças e das tochas numa floresta à noite? Nas pinturas de Ucello. Ucello é um pintor impressionante; mas é também um mestre menor, ou um mestre cuja obra, excelente, se situa à margem das energias centrais da arte do Renascimento. Desgastado pela sentimentalidade e pelo gosto de classe média, o seu empastamento pesado e a sua violência estática ressurgem nos pré-rafaelitas. O olho de Jünger é incrivelmente afim ao de Millais e de Rossetti. As duas estéticas registram os mesmos detalhes minuciosos de flora e de fauna, os mesmos matizes de apetrechos preciosos e panejamentos de seda. Os diários de Jünger registram uma mania de coletar itens extravagantes, material erótico do século 18, um rebuscado e superficial bricabraque do mundanismo europeu e oriental. Compartilha com pintores e poetas do fin-de-siècle um interesse amador pelo sadismo. No porto de Paris, o capitão Jünger estudou com afinco empoeiradas crônicas de castigos e execuções. O canibalismo persegue a sua imaginação e ele anota, com a precisão de um curador, os indícios do seu renascimento no front russo e nos campos de prisioneiros esfomeados. DECADENTISMO Os inspiradores da sensibilidade de Jünger são antes franceses do que alemães. São os movimentos pós-simbolistas e decadentes na literatura francesa que o influenciam de modo mais direto; Huysmans, Léon Bloy, Octave Mirbeau, cujo Jardin des Supplices congrega já no seu título dois interesses constantes de Jünger. No seu terrível alheamento, Strahlungen, de Jünger, o registro dos seus anos na Paris ocupada e da sua visita guiada ao front caucasiano, contém reminiscências de alguns dos diários dos irmãos Goncourt, em particular dos anos 1870-71. Em ambos os casos, a estratégia decisiva é a da experiência dominada pela elegância. Seja ao observar a compra de uma gravura rara ou o massacre de judeus, Jünger mantém uma disciplina do sentimento meticulosa e serenamente vigilante. Ao assistir ao ataque à fábrica da Renault em março de 1942, o cavaleiro dos penhascos de mármore comenta que houve muitas centenas de mortos e mais de mil gravemente feridos: "Mas, visto do meu quartel, o caso pareceu antes um jogo de luzes num teatro de sombras." Esse é o enfoque do dândi. Refiro-me à palavra no seu sentido forte, que abrange o ascetismo e a coragem fria. O dândi encara o conjunto da vida, mas o mantém a uma distância segura. Só há uma tentação a que Jünger acha de fato difícil resistir: a tentação de desprezar os seres humanos. Agora desconfio que essa atitude é mais freqüente do que se supõe entre homens de cultura elevada. Mas Jünger transforma em virtude aquilo que é, em essência, um grave defeito de consciência, uma atrofia do centro vital. FALTA DE CORAGEM Um "clássico do século 20"? Talvez sim. E num sentido quase matemático. Nos Penhascos de Mármore é um teorema da limitação. Reconstitui a exata incomensurabilidade entre um certo modelo de humanismo abstrato ou de alta civilização e a realidade do terror moderno. Na sua tranqüilidade ritual, na sua franca sugestão de que a fuga para a utopia arcaica (o reino da privacidade, da cultura de esteta e de colecionador de antiguidades) é a única saída, a lenda de Jünger encarna uma trágica falta de coragem. Otho e seu irmão são guardiães da ruína, assim como são herboristas. Suas capacidades de reação efetiva definharam na raiz. Jünger professa ter dedicado a vida toda ao combate contra o niilismo; o espectro do niilismo assombra a sua retórica do pós-guerra. Contudo existe no seu próprio ponto de vista - física e psicologicamente contido no brutal tecido da história, como foi a sua carreira, sem sombra de dúvida - um profundo niilismo. Ao ler sua obra, sentimos o que Emily Dickinson chamou de "um zero na medula". A incapacidade de sentir causada pelo receio de o sentimento se corromper ou tornar-se banal é, talvez, o dilema paralisante de uma cultura clássica, forçosamente elitista. Nos Penhascos de Mármore tem importância como uma afirmação desse dilema. A palavra noturna que o próprio Jünger aplica à sua condição é tristia. Por ela passam os ventos mais frios do Limbo. Despojado do seu filho único, presenciando a débâcle da Alemanha rumo à abjeção hedionda, Ernst Jünger comparece a uma reunião derradeira e absurda dos oficiais nazistas locais. Vê os sicários de Hitler maquinando o seu último ato homicida ou preparando-se para fugir em busca de esconderijo. Ainda aqui nenhum grito, nenhum rasgo de raiva escapa de Jünger. Ele anota no diário: "Falta-me a capacidade de odiar." Houve momentos demais em nossa época selvagem em que ausência de ódio é o mesmo que a ausência de amor. George Steiner (1929) é crítico de arte. Professor da Universidade Cambridge, deu aulas também em Harvard e Oxford. Entre seus livros estão Gramáticas da Criação e A Morte da Tragédia. Este texto foi publicado originalmente em 1969 como apresentação à edição inglesa de Nos Penhascos de Mármore; a tradução é de Rubens Figueiredo

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