Entenda o processo de criação dos figurinos

Figurinista Marcelo Pies explica peça por peça, ponto por ponto

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Por Fausto Viana e Rosane Muniz
Atualização:

Entrevista com o figurinista Marcelo Pies sobre seu processo de trabalho e a concepção dos figurinos para o espetáculo. Como se deu a inspiração inicial para a criação dos figurinos de Hamlet? Eu não assisti a nenhuma montagem do Hamlet até hoje, nem a mais recente do Enrique Diaz (Ensaio.Hamlet). Pensei em dividir as personagens em três grupos. O primeiro seria o grupo de teatro, que usaria uma roupa base, entre uma mistura de roupa de ensaio e as roupas dos atores. Mas sem a simplicidade que, na maioria das vezes, essas roupas têm. Em cima dessa base, entraria, aos poucos, o figurino da peça Hamlet, que seria o segundo grupo. E por causa da dicotomia ator/personagem, propus que sempre fosse revelada, por baixo, a roupa do ator que encena. Por isso, a brincadeira de casacos sempre abertos. Por exemplo, os guardas que vêm na cena do fantasma, usam uma mistura, uma colagem de várias roupas de exército, sem uma transformação. Os atores colocam a casaca e o público vê que é o ator se transformando naquela personagem. Então, o figurino para a peça Hamlet deveria ser um figurino despojado, mas que também não fosse uma roupa contemporânea, senão não teria muita diferença do primeiro grupo. O Aderbal não queria roupa de época e, desde o início, o Wagner Moura perguntou brincando: ''Aderbal, nós não vamos ter que usar aquelas meias colantes da Renascença, não é?'' Nunca pensamos nesta opção, que só ficaria boa nas recriações perfeitas de figurinistas italianos, por exemplo. Aqui, ficaria ridículo. Qual a inspiração para os figurinos da Gertrudes? Acho que acabei inspirado pelos vestidos de baile do Dior. Só que sugeri que a roupa de baixo sempre vazasse e aparecesse. Por isso, as alças que a Carla Ribas usa, como atriz, sempre estão aparentes. O que, por um lado, leva a uma concepção moderna. Ficaria mais bonito, talvez, sem aparecer. Mas esta é a idéia, já que os atores trocam de roupa no palco, na coxia visível. Assim, seus vestidos sempre têm uma transparência, apesar de mais suntuosos e ricos. O Aderbal não queria muitas trocas, mas a rainha pedia uma riqueza maior. Assim, criei uma base de tule transparente, encorpado do busto até a cintura, que depois abre em uma saia. Criei todos os vestidos na técnica de moulage. Pus cada vestido no manequim e fui transformando junto com a costureira. Mantendo as formas acinturadas e com saias um pouco mais evasés e na cor vermelha. Nota-se que ela está com uma roupa nova, mas muito parecida, embora em tecidos e detalhes diferentes. Também tem a roupa de luto, onde todos aparecem de preto. E tem a roupa do quarto, que todos acharam que deveria ser uma roupa mais íntima, em um momento mais frágil. Este conjunto de camisola e pegnoir também foi confeccionado especialmente para a peça? É devoré feito à mão (esta técnica consiste em ''devorar'' partes da peça por um processo especial, criando efeitos de alto relevo. Logo em seguida a peça é pintada). O vestido vermelho de veludo também. Aliás, os vermelhos foram quase todos tingidos. Não se achava um vermelho pronto, bonito. Então, todos foram pintados à mão para que se achasse o tom bonito e que desse uma unidade entre os três vestidos da rainha. No grupo de figurinos para a encenação de Hamlet tem mais duas coisas que foram inspiradas na época da Renascença, mas bem distante. Era moda que a roupa dos homens e das mulheres fossem talhadas. Uns cortezinhos que deixavam visível a camisa de baixo. Achei isso muito bacana porque parecem navalhadas. Aí resolvi adaptar. O primeiro paletó de veludo que o Wagner tem é cheio de navalhadas. Nas costas tem três navalhadas, no braço, o cotovelo sai... Essa idéia veio da Renascença. E a segunda coisa são as sobreposições, que também tinha quando deixavam transparecer a roupa de baixo. Então, também trabalhei sobreposições. O Wagner, como exemplo, veste um paletó comprido que tem três camadas na parte de fora. Tem uma camurça preta, depois uma mescla de tweed cinza, preto e branco e por último a base é um algodão estonado cinza. Fica bonito no palco e é teatral porque fica solto e ele brinca com isso em cena. O próprio Polônio usa uma sobreposição já no início. Ele tem dois paletós, um de brechó. Na verdade, o figurino deste Hamlet tem desenhos meus, tem peças de brechós que transformei e tem muita roupa de base, na parceria com a Osklen. Me conte um pouco da opção pelo paletó dourado para o Claudio e como foram feitas as estampas nas costas e braços. Optei pelo ouro velho (ele é o único que usa esta cor) porque ele é o rei. Assim, do mesmo jeito minimalista geral, passaria a idéia da sua riqueza, extravagância e poder. O paletó é de couro, pois foi o único material, na cor, que achei bonito e digno. Inseri as estampas em silkscreen porque o conceito precisava ser sublinhado, na minha opinião. Quando ele troca para o figurino preto, mantive a idéia do ouro nos silks. Todas as estampas foram desenvolvidas e, no caso da estampa ouro no preto, as cores de silk ouro não chegavam ao tom realmente ouro. Resolvi o problema passando o silk sem tinta, apenas com um tipo de cola usada para colar laminados. Depois joguei pó de ouro por cima. O vestido de Ofélia na cena da loucura vem da idéia de uma camisa-de-força? Sim. E isso me levou às camisas de homem. Como a roupa dos guardas, tive a idéia de fazer uma montagem e fui criando no manequim. Mas a criação original era para ser uma mistura de camisa-de-força, vestido de noiva e freira. Ia ser mais clara a idéia da freira porque ela ia ter um acessório de cabeça que misturava a loucura com o adereço usado pelas freiras. Mas o Aderbal achou demais e caiu. Aí ficou o sentido da noiva e da loucura, como os mendigos que misturam uma roupa em cima da outra. Acho que é um dos vestidos mais bonitos da peça. Como o desgaste que você usou na roupa dos coveiros? É. Os coveiros estão, a princípio, dentro da cova. Então pede este desgaste, da terra. Nesta peça eu quis criar uma estética próxima do contemporâneo, mas que tivesse uma estranheza. Por exemplo, quando o Hamlet usa aquela blusa cheia de zíperes. Pensei isso para não repetir a idéia só dos cortes como navalhadas. O zíper, quando aberto, também permite os vazados. Sobre o zíper, foi muito comentado quando o figurinista Fabio Namatame criou os figurinos para o Hamlet do Diogo Villela com roupas de zíperes aparentes. Ai... eu não vi, não. Mas a estética dele era muito mais próxima da Renascença, pelo que lembro de algumas fotos... O zíper pode ser uma navalhada, só que abre e fecha em alguns momentos. Você usa e abusa do recurso das sobreposições na confecção das casacas e paletós. Claro. As sobreposições de camisas da Ofélia eram por causa da loucura. Mas o Hamlet , até duas semanas antes da estréia, tinha um figurino, que foi uma das razões para a criação da roupa da Ofélia. Eram cinco camisas sociais, uma em cima da outra, em dégradé Até chegou a ser fotografado, mas tinham trocas demais e este figurino teve de ser cortado. Você mistura elementos de época com trajes contemporâneos. A intenção era ser atemporal ou trazer Hamlet para o cotidiano e colaborar com esta identificação do público? Era para ser atemporal. Puxando mais para o contemporâneo do que outra coisa. Mas claro, eu fiz o dever de casa, estudei a Renascença, o período medieval e peguei os elementos que me bateram, como essas sobreposições e cortes. O Aderbal fala isso: tem uma estranheza. Parece contemporâneo, mas ao mesmo tempo é mais ousado. A armadura, que pesa 16 quilos, está em cena mais como símbolo e adereço do que propriamente uma veste cênica . Sim. A única coisa que o Aderbal queria mais próximo de época possível era a armadura. Eu poderia ter estilizado, mas esta é uma cópia de uma armadura renascentista. Cheguei até a pesquisar de aço, mas era muito pesado e muito caro. No início ela era brilhante, depois envelhecemos. Mas como ela tinha que ser vestida em cena, foi toda adaptada com velcros. A cueca de seda vermelha usada por Tonico Pereira faz parte do figurino de Claudio ou da coleção pessoal do ator e seu fetiche por esta peça, que é normalmente sua roupa de ensaio oficial? Eu conheço o Tonico há muito tempo, mas nunca tinha feito teatro com ele. Quando o vi chegando no ensaio, tirando a roupa e ensaiando de cueca... O Tonico de cuecas... fazendo o Claudio... (risos ) Serviço Hamlet. 170 min (c/ intervalo). 14 anos. Teatro Faap (500 lug.). Rua Alagoas, 903, 3662-7233. 6.ª e sáb., 20 h; dom., 18 h. R$ 80. Até 28/9

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