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Ensaio poético sobre as moradas de Tom

Obra sobre e com Jobim é assemblage de vídeos, filmes caseiros e fotos tiradas por sua mulher, Ana Lontra, durante 17 anos

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Tinha tudo para dar certo, e deu. Por que não daria certo um DVD com e sobre Tom Jobim, realizado por quem viveu com ele 17 anos, e durante todo esse tempo documentou-o de quase todas as maneiras e em pelo menos três formatos diferentes? Sorte grande tirou o maestro: além de bonita e 22 anos mais nova, Ana Lontra (Jobim a partir de 1978) tinha jeito para fotografia e um senso de organização que ao avoado marido muita falta fazia. E assim foi que Ana Jobim registrou o cotidiano do seu personal genius e pôs em ordem suas coisas: suas partituras, seus guardados, sua agenda, seus contratos, seus direitos autorais. Sem ela não existiriam a Jobim Music e o Instituto Antonio Carlos Jobim, núcleos familiares de preservação da memória do compositor. Nem as celebrações de sua obra, em discos, livros, mostras - e, agora, em DVD. Mais um produto do selo Jobim Biscoito Fino, A Casa do Tom é uma harmoniosa assemblage de vídeos em U-Matic, filmes caseiros e fotos tiradas por Ana, que, por coincidência, comprou sua primeira câmara fotográfica, uma Minolta semi-automática, depois de ver em ação a de um velho comparsa de Tom, Luiz Bonfá. Com a ajuda de um primo cinéfilo, Luiz Eduardo Lerina, que também morava em Nova York, e um técnico de som, a memória visual começou a ser recolhida: Tom, de trench coat, no Central Park, a folhear uma seleta de Pablo Neruda (porque foi o poeta chileno quem definiu o Rio de Janeiro como ''''la puerta delirante de una casa vacia, el antigo pecado, la salamandra cruel intacta de los largos dolores de tu pueblo''''), a brincar com o filho João Francisco ao lado do Reservatório do parque, a bater perna pela Quinta Avenida, a comprar charutos na Casa del Rey, a visitar museus, a compor no piano com vista para o skyline de Manhattan. Para ajudá-la a amarrar tudo aquilo, mais as tomadas feitas no Rio, Ana convidou a amiga Júlia de Abreu, e para editar o material digitalizado, a montadora Diana Vasconcellos, a mesma do filme Vinicius, de Miguel Faria Jr. Até na produção, tudo em família. E com um fio condutor às escâncaras: as casas do maestro. Por pouco não se adotou o mesmo título do livro que há exatos 20 anos lhe servira de inspiração: Ensaio Poético, afetivo projeto a dois, com imagens registradas por Ana, textos (& versos) de Tom - e muito Rio, muita mata e muitos bichos. O que do ensaio precisava ser preservado nesse álbum de família digital, o foi: também é um triângulo amoroso entre Tom, Ana e a Natureza, igualmente dedicado aos dois filhos do casal, João Francisco e Maria Luiza, e uma ode às moradas do maestro. Em especial à que ele mandou construir no alto do Jardim Botânico, em 1979, tema de um poema autobiográfico, Chapadão, que demorou mais tempo para ser concluído do que a casa erguida ao longo de quatro anos, ''''sob a axila do Cristo Redentor''''. Se o título e detalhes esparsos lembram Guimarães Rosa, a maior paixão jobiniana depois de Villa-Lobos, sua embocadura tem mais partes com o Manuel Bandeira que se mandou para Pasárgada, onde era amigo do rei. Tom mudou-se para o alto do Jardim Botânico para poder olhar de cima o seu quintal favorito, onde era amigo das plantas e da bicharada. ''''Vou fazer a minha casa No alto do Chapadão Vou levar o meu piano que ficou no Canecão.'''' Assim começa o Chapadão. Seguindo na mesma toada, Tom anuncia que também levará Aninha (''''pra me dar inspiração''''), e a seu lado construirá uma quimera larga e soalheira, ''''um mundo novo'''', onde as noites serão tranqüilas e os dias radiosos, onde não haveria sábado, nem domingo, pois todos os dias seriam santos, e todas as sextas-feiras, da paixão. Mas a verdadeira casa do Tom não ficava sob os braços do Redentor abertos sobre a Guanabara. Nem no sítio do Poço Fundo, no Estado do Rio, seu refúgio mateiro desde os 15 anos de idade. Nem no apartamento de Manhattan, por ele apelidado de ''''a room with a view''''. Sua casa ficava em qualquer parte do planeta. ''''Minha casa é por aí'''', ressalva um verso de Chapadão, ''''é no mundo, monde, mondo''''. Daí o subtítulo do DVD: Mundo, Monde, Mondo. ''''Depois de uma certa idade, não importa onde você mora'''', filosofa o maestro, num dos primeiros dos vários e acronológicos depoimentos que compõem o DVD. Para reforçar sua tese, socorre-se no sábio cujos 80 anos brindou nas últimas páginas do Ensaio Poético, Carlos Drummond de Andrade (que um dia escreveu: ''''Os senhores me desculpem, mas devido ao adiantado da hora me sinto anterior a fronteiras''''), de imediato esclarecendo que as fronteiras são todas fictícias e inúteis. ''''O sujeito bota lá uma cerca, e o urubu passa por cima.'''' Ave rainha da ornitolatria jobiniana, o urubu desponta, aqui e ali, em suas 20 variações, evocando Guimarães Rosa, introduzindo uma viagem até Poço Fundo (onde surgiu a inspiração para Dindi e brotaram, da primeira à última estrofe, as Águas de Março), fazendo pendant com as gaivotas que tiram rasantes dos arranha-céus nova-iorquinos vizinhos ao dos Jobim. De carona nas asas de um urubu-jereba, Tom abre o seu coração ecológico e destrava sua ira conservacionista, reclamando das queimadas, sugerindo que todo brasileiro só deveria carregar caixa de fósforo com licença do Ibama, e admitindo, apocalipticamente, que a destruição do mundo provará a enorme incompetência do homem, posto que ''''somos um animal daninho''''. Foi motivada pela paixão do marido pela natureza que Ana passou cinco anos (de 1991 a 1996) tirando 4 mil belas fotos em cores da Mata Atlântica, do Ceará ao Rio Grande do Sul, para um livro lançado em 2001. Quando dizia que toda sua obra fora inspirada na Mata Atlântica, Tom não estava fazendo gênero. Os álbuns Urubu, Terra Brasilis e Passarim acabam com qualquer dúvida. Abrindo A Casa do Tom, flagrantes do maestro compondo ao piano, na casa do Jardim Botânico, o charuto na mão esquerda, o pentagrama e o lápis ao alcance da mão direita. Embalando a protofonia, o Tema para Ana, executado duas vezes ao longo do DVD, uma delas, também no piano do autor, pelo japonês Ryuichi Sakamoto, em 2002, oito anos depois da morte de Tom - que, aliás, não gravou o tema comercialmente, apenas en privé, para sua musa ouvir e guardar num gravador caseiro. Outras 15 músicas do mestre enriquecem o repertório, coadjuvadas por uma valsa de Paulo Jobim (o filho mais velho e um dos arquitetos da casa do alto do chapadão), um clássico de Bororó, Curare, e um pot-pourri de Dorival Caymmi numa das passagens mais animadas e emocionantes do DVD, com as famílias Jobim e Caymmi a maracangalhar o que de mais buliçoso a música baiana tem. ''''Quanto mais eu canto essas músicas, mais feliz eu fico'''', confessa o anfitrião, devoto incondicional de Caymmi. Tom adorava executar e cantar composições alheias. Sozinho ou em saraus domésticos, que eram freqüentes no Rio, pela proximidade de parentes e amigos mais chegados. Num filme caseiro rodado em 25 de janeiro de 1986, ele aparece comemorando seu 59º aniversário, comme il faut: sentado ao piano, regendo e acompanhando um festivo coral a entoar sem parar o hit de outro baiano: Bim Bom, de João Gilberto. Só essa festa de aniversário, o encontro com a família Caymmi e os ternos momentos com Maria Luiza e João Francisco (que morreria num desastre de carro aos 18 anos) já valeriam um DVD. À venda a partir do final da próxima semana, pelo preço médio de R$ 49,00, A Casa do Tom tem tudo para ser um dos presentes de Natal mais chiques que você já deu a alguém.

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