Em Tropa de Elite, queremos vingança

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Por Redação
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Fui ver o Tropa de Elite como quem vai cometer um crime, fui assistir ao filme para me ''''purificar'''', mergulhando em um poço que imaginava tenebroso. No tempo do ''''Esquadrão da Morte'''', tudo que o bandido destinado a ''''presunto'''' implorava aos policiais, com o fio de náilon passado em seu pescoço, era que eles avisassem a hora em que iam seccionar sua carótida, afogando-o em sangue. Mas os caras maus não diziam e o fio era puxado de repente e zás... pescoço cortado. A namorada de um matador me contou que ele se masturbava, enquanto executavam o vagabundo no terreno baldio, lentamente, com peixeira, para dar tempo de gozar no lenço. Fui ver o Tropa de Elite ansioso para fazer uma ''''trip'''' criminal contra minha antiga e cultivada ''''bondade'''': tesão de ser mau, querendo gozar com a violência. Não com a violência ''''estética'''' de lixos fascistas como o filme 300, com cabeças e braços voando em câmera lenta, nem com Chuck Norris e outros assassinos. Não estava querendo ver os balés de corpos massacrados do cinema americano, o prazer da morte, eles sim, ''''fascistas'''', essa vaga palavra mussolínica. Eu queria sentir o prazer da vingança, interpretado pelo meu ''''procurador'''' Wagner Moura, que aliás, está genial no papel. Já tinha visto Notícias de Uma Guerra Particular, a obra-prima de João Moreira Salles (será que esse nome renascentista se aplica a um filme como aquele?) Já tinha visto o excepcional Ônibus 174, também de José Padilha (aliás, o maior sucesso do cinema brasileiro no mundo), mas esses e outros, como o Cidade de Deus, provocaram em mim apenas um vago mal-estar político, uma indignação culposa, uma ''''malaise'''' humanista diante da bestialização da vida brasileira, provocada pela inexistência de poderes públicos e pela influência da multinacional da cocaína, cujos líderes políticos aqui, na América Latina e anglo-saxônica, impedem a legalização das drogas, para manter o lucro de bilhões. Essas e outras obras de denúncia política me davam uma espécie de ''''consolação'''' pela comiseração ou o lamento da miséria (como nomeou Marx em seu texto sobre os folhetins de Eugene Sue). Aliás, a miséria e a violência também já me foram ''''úteis'''' como assunto ou para eu posar de bacana, de politicamente correto, assim como já serviu a muito cineasta e literato para ganhar dinheiro, condenando-a. Mas, quando eu fui ver o Tropa de Elite eu não queria socialismo nem consolação; eu queria vingança. Tinha lido nos jornais a eterna polêmica de nossos intelectuais dualistas: progressista ou fascista? Esquerda ou direita? Essa gente só consegue raciocinar com um cuco na cabeça, batendo o pêndulo como um colhão pendurado, tentando enquadrar a realidade num conteúdo ideológico qualquer. Muito bem. Fui. Entrei no cinema ofegante, ocultando-me na gola do sobretudo como um suspeito, e vi o filme. E verifiquei que o filme não era um filme. Calma, não estou esculhambando. Era mais que um filme; era um evento, uma experiência. Ninguém foi ''''vê-lo'''' - foram senti-lo, vivê-lo. Em filmes recentes (e esse é um deles), há uma urgência até meio ''''antiartística''''. Tudo parece um grande videoclipe jornalístico, tudo é um berro assumido como um manifesto, para dar conta de uma realidade terrível, mas invisível no dia-a-dia. Não há lugar para a ''''arte''''. A única mise-en-scène do filme é não ter mise-en-scène. Por exemplo, no Notícias de Uma Guerra Particular, ainda há uma forma: a tensa banalidade de tudo, a trágica beleza de nossa impotência diante dos fatos mostrados. Ali, está a arte. Em Ônibus 174, Brecht se vira no túmulo quando, num raro momento da história do espetáculo, o seqüestrador (que sabemos que vai morrer, ao lado da moça também condenada) se vira para a câmera, para nós, no olho, na platéia, e berra: ''''Isto aqui não é filme, não! Aqui é a realidade!'''' Ali, explode a arte, ali viramos ao avesso e somos ejetados da sala caindo em lugar nenhum. Neste filme, não. No Tropa de Elite, a importância não está na narrativa (até bem ''''americana''''); a importância não está no que ele concluiria ou nos ensinaria (já houve tempo em que queríamos ''''conscientizar'''' as pessoas com o cinema... já houve tempo em que a arte tinha a esperança de sedimentar ensinamentos...) Neste caso, não; a importância do filme é ter nos transformado em personagens. Os milhares de cópias piratas buscadas com fome, as platéias sideradas quase sexualmente pelo sangue, mostram que nós somos os personagens de um País sem enredo, que estamos famintos de que algo aconteça, de que alguma forma de justiça se faça, de que nem Wagner Moura, nem ninguém, nos salvará. O filme exibe a nossa impotência diante do crime e da desordem republicana, nossa dolorosa decadência provocada pela política imunda que paralisa o País.

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