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Em torno do progresso e do sofrimento

Por Roberto DaMatta
Atualização:

O lema "ordem e progresso" cabe bem nas bandeiras, mas a vida seria melhor descrita pelo laço entre progresso e sofrimento. Pela progressão que julgamos cumulativa, satisfazendo velhos desejos e inventando novos projetos, e a perda e a dor decorrentes das frustrações que, volta e meia, escapam das malhas das conquistas tecnológicas que nos acompanham revelando que o mundo, não sendo mesmo como gostaríamos que ele fosse, tem uma estranha espessura. Circunstâncias não previstas ligaram-me ao mundo dos aviões e dos aeroportos. Tive um filho que morreu uma morte não anunciada nem esperada junto com a sua amada Varig, no derradeiro dia de suas férias. Diante da morte, ele não teve aqueles sinais que vão dos sintomas resistentes aos remédios caseiros, até a contrariada consulta ao médico, a surpresa quando se constata a doença grave ou incurável, a internação e, finalmente, o inominável divórcio, como cadáver ou cinza, daqueles que amorosa e exultantemente o trouxeram a este mundo, agora transformado e vivido como um vale de lágrimas. Mas teve, sem dúvida, como ele bem pressentia, o abandono de um governo que sequer cogitou considerar uma gigantesca dívida para com a sua companhia ou os dinheiros do fundo de pensão dos seus trabalhadores para salvá-la de si mesma. Atitude que tem sido sistematicamente negada quando se observa o modo com o qual o governo federal trata os sindicatos e os movimentos sociais debaixo de suas asas. Como todos aqueles que perderam seus entes queridos de uma hora para outra, e como pai de um aviador e não de um mero piloto, como eram esses nobres comandantes do Airbus que sumiu em algum lugar de um oceano que julgávamos mapeado e, portanto, conhecido, eu sinto uma enorme revolta contra aquilo que um lado meu vai morrer perguntando ao outro sem jamais ter uma resposta: se o Lula tivesse tido mais consideração ou "cuidasse" melhor da Varig, eu estaria com o meu filho a meu lado? Estariam sua mulher e filhos gozando a energia protetora do marido e do pai dedicado para prover-lhes segurança e dar-lhes carinho e amor? Sorte dos que, por meio de alguma ideologia política, econômica ou religiosa, explicam os acidentes e as incertezas. Que respondem ao "porquê" aquela pessoa ou grupo, cumpriu o trágico destino da morte sem aviso. Viver num universo deslindado pelas leis da História, do mercado ou protegido por um Deus onipotente; ou dinamizado por espíritos e vontades que tudo governam é mais tranquilo, do que receber a bofetada do caos e da desordem promovida pelo infortúnio da magnitude desse acidente com o avião da Air France. Receber a pancada e manter-se de pé, certo de que é justamente esse brutal encontro com a transitoriedade que nos torna verdadeiramente humanos é, no entanto, para alguns, a mais honrosa prova de amor à vida. É o teste crucial de que ela pode ser mesmo vivida com o amor que nada pede, nem mesmo a sua justificativa, ou o seu mérito porque, como se diz, inspirado por São Paulo e Thornton Wilder, no amor nossos erros não duram muito. A aceitação da impossibilidade de tudo saber e controlar é o que permite - ao lado da lira, dos livros e do riso - pôr a morte acidental no seu devido lugar. É mais uma prova terrível porque irreversível de que somos mesmo seres da finitude e, portanto, da relação, da piedade e do amor. Não porque ofendemos os deuses ou porque um chefe de Estado pequeno prefere os amigos ao equilíbrio ético; mas porque não esquecemos da espessura do mundo. Daí a força desse abraço que trocamos no fracasso, na injustiça, no acidente e na morte. Daí essa consciência de ressurreição quando um fato extraordinário nos obriga, como esse acidente, a viajar para dentro de nós mesmos na busca de um renascimento que é a fonte de toda vida que deseja ser vivida na verdade, na dignidade e no amor. Porque a fonte da vida social é esse amor humano - finito e fugaz - que está sempre dizendo adeus, e que sempre diz menos (ou mais) do que deveria. É precisamente na consciência da falha que está a orgulhosa consciência e o sábio alento que tangem esse nosso mundo sempre sujeito a acidentes e injustiças. Esse universo construído pela mortalidade, pela feiura, pelos enganos e pelas injustiças, mas dotado de uma abençoada transitoriedade. Único mundo que pode mesmo ser apaixonadamente amado e que, por isso, vale a pena ser vivido. O trágico voo 447 leva-me a repensar a equação entre progresso e sofrimento. A questionar a linearidade tradicional, essencializada em lógica e tida como natural, segundo a qual, o progresso inevitavelmente ordena; a razão produz controle e a união entre progresso e racionalidade acabaria com a dor do mundo. Fé difícil de abraçar hoje em dia, quando não são religiões ou ideologias anticapitalistas, mas um óbvio desastre ecológico que mostra como a ideia de progresso sem limites tem legalizado a destruição do planeta. Curioso observar como numa dezena de anos a tecnologia que consagrava a dominação dos outros povos pelo Ocidente iluminado passou de remédio a veneno. E como um trágico acidente nos traz de volta a vida representada como um real, embora esquecido, vale de lágrimas. Basta viver a incerteza para reavivar a nossa fragilidade e expor uma imensa nostalgia daquele pensamento selvagem recheado de deuses e magia que era a prova mais cabal de trevas, primitivismo e ignorância.

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