Em sua radicalidade, esta é uma uma ''obra para espíritos livres''

Lars von Trier evoca título de Nietzsche para expor sua visão aprofundada sobre os fantasmas da sexualidade feminina

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Por Crítica Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O Anticristo é um drama psicológico - um legítimo filme de terror interno. O casal interpretado por William Dafoe e Charlotte Gainsbourg sofre a morte de um filho em um acidente. A culpa e a depressão se instalam, em especial na mulher. Ela está sendo tratada no hospital, mas sendo o marido terapeuta, acha que pode cuidar sozinho do caso. Os dois vão para uma cabana isolada no meio da mata, confiantes em que a solidão e o enfrentamento da depressão poderão curar a dor, a culpa e o arrependimento. Assista ao trailer de O Anticristo Há toda uma simbologia aí instalada, com a presença da natureza hostil e animais emblemáticos - o corvo, o cervo, o lobo. Curiosamente, o casal chama aquele local de "o Eden". O paraíso. Denominação que, naturalmente, não passa de uma ironia a mais em filme tão radical e duro. De estrutura muito rigorosa, O Anticristo divide-se em prólogo, capítulos e um epílogo. No começo, um ato sexual bastante explícito e muito estilizado é acompanhado pela ária Lascia qu?Io Pianga, da ópera Rinaldo, de Haendel, cujo libreto é baseado em Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso. O sentido religioso-elegíaco da música tem contraparte no gozo extremo dos sentidos - enquanto, em paralelo, a morte se prepara. Nos capítulos internos, o registro é outro, tanto fotográfico quanto na apreensão dos atores. Boa parte da ação se passa na mata, ou no interior despojado da cabana. O tom é quase monocromático, como se as cores tendessem ao desaparecimento. É uma batalha travada no escuro, em interiores diminutos, em espaços fechados, ameaçadores. Há um tom carnal que passa pela obra, de vísceras, dos órgãos internos em sofrimento. Lars Von Trier parece querer tocar nas franjas do inconsciente, quer dizer, naquilo que não pode ser dito ou descrito. O tom elegíaco só retornará no desfecho, mas não sob a forma de libertação, redenção ou alívio. Pelo contrário, será a reposição, multiplicada, de um mistério desdobrado durante todo o filme - o da feminilidade. Ou melhor, do desejo feminino. Talvez não seja gratuito lembrar que o título é o mesmo do livro de Nietzsche, em sua mais ácida crítica ao cristianismo. Como Nietzsche, também Von Trier poderia ter colocado como epígrafe: "Essa é uma obra para espíritos livres, pois só estes a entenderão."

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