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Em roda do táxi, num mundo encantado

Por Roberto DaMatta
Atualização:

Quantas vezes você entrou num táxi e recebeu do motorista um olhar idêntico ao do mordomo espanhol que cuidava do Rubião - visada sinalizadora de que não é fácil passar de pato a ganso? E quantas vezes você, afável, e movido pelo desconforto da proximidade física, não iniciou a conversa, tentando definir o seu papel patrão, só para ouvir de volta um rosário de mau humor ou de reclamações? Tudo agravado pela sua consciência de estar inteiramente à mercê da habilidade e do bom senso de um sujeito que pilota um aparelho que pode te "levar pra casa" ou para um hospital ou necrotério. Outro dia, por exemplo, fui confrontado com um motorista que fazia teste nos seus eventuais passageiros. Teste de português, teste de conhecimentos de música clássica, teste de ver quem esculhambava melhor o governo e previa pior destino para o País, teste de diferenciação precisa entre comunismo e capitalismo. Diante da tortura de, às 8h30 de manhã e depois de um vôo marcado pelo nosso jamais antes visto duopólio aeronáutico que me fez amargar esperas, comer um pãozinho com gosto de cocô mofado e de não ter as escolhas que o demônio do mercado eventualmente permite, o homem, sempre vigoroso, me pergunta: "O mestre não está gostando da conversa?" Respondi o que podia: "Mas o que posso fazer, se não posso sair do seu carro?" Quantas vezes você não se irritou diante da agressividade e da indiferença) de um prestador de um serviço pessoalizado? Agressividade que, quando somada à incompetência, faz do encontro um inferno e conduz a uma senda de riscos? É claro que todo mundo aprecia uma certa cota de subserviência que vem dos rapapés escravistas, temerosos das igualdades desabridas daqueles que não entenderam jamais o antigo princípio moral do "mais amor e menos confiança" que rege o sistema. No fundo, gostamos de quem nos serve com o sorriso humilde que promove a sensação de retorno a um lugar conhecido. Com isso, nós, que somos sujeitos comuns (chamados, às vezes, com injustiça, é certo, de merdas desta vida), provamos o gostinho do baronato, do que vem com o dinheiro e do cargo público regado a mordomias. Pois dentro da impessoalidade que marca a vida moderna (impessoalidade que funciona por meio de botões, dispensando mesuras e intermediários), os gestos educados reafirmam gentilezas esquecidas e marginalizadas pelo anonimato que é parte do individualismo igualitário. Isso é particularmente saliente com os taxistas, mas ocorre com o enfermeiro, o engraxate, o barbeiro e o garçom que podem servir com o engajamento brioso que admiramos e tomamos como apropriado; ou de modo polido, mas distante. Quando isso ocorre, eles ficam muito mais próximos do carro, do restaurante, da tesoura ou do hospital do que de você: cliente e doente, carente de comida, remédio, beleza, atenção e, sobretudo, daquele sentimentozinho crucial de importância e superioridade. Num mundo movido a anonimato e impessoalidade, esses servidores, que operam profissionalmente numa escala de relativa intimidade física, sempre despertam minha admiração. Não me intriga o último modelo do automóvel, do computador ou da televisão, mas sou fascinado quando testemunho os velhos gestos precisos, cuidadosos e sempre elegantes de quem me serve a comida, corta o cabelo, faz o curativo e dirige o táxi. São esses profissionais que trazem de volta o encantamento - a magia - do mundo. São eles que detêm a chave da jaula de ferro que por um momento nos livra dos automatismos nascidos com a dominação burocrática (e automática, independente das vontades, desejos e requisitos humanos) apontada pelo gênio sociológico de Max Weber. Os melhores profissionais são os que nos fazem ouvir (e contar histórias). São os que atuam em nossos corpos amenizando o desconforto da extremada (ou invasiva) proximidade física que reduz a dor, torna a corrida mais amena, aumenta nosso sentimento de beleza e acentua a delícia do vinho e da comida, trazendo de volta velhas gentilezas que são parte de quem lida com as alteridades chamadas de "público". Não deixa de ser paradoxal observar que, no mundo impessoalizado que nos engloba, existam esses barbeiros, enfermeiros, taxistas e garçons que mexem e remexem o nosso rosto, cuidam de nossas feridas, e nos assistam como doentes ou famintos, bêbados e sóbrios, angustiados ou serenos. O que prezamos nesses serviços não é o comportamento seco, eficiente e elegante de um machadiano mordomo espanhol, mas o vapor daquela chaleira aquecida a um toque de deferência; sinal de que não se pode fazer tudo sozinho. Marca de que todos carecemos da complementaridade que nos fala das dependências entre coisas, animais e pessoas. Sinal pungente da humildade da condição humana no seu sentido mais radical.

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