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Em que acredito

Sinopse

Por Daniel Piza e E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
Atualização:

No delicioso Livro dos Insultos, publicado em 1988 e prestes a ser relançado, o crítico e jornalista H.L. Mencken faz uma descrição crítica da humanidade e, entre suas ilusões, inclui a de ir à Lua. Na nota de rodapé, o tradutor e organizador Ruy Castro observa que o texto foi escrito em 1919, meio século antes, portanto, do pequeno passo de Neil Armstrong. Mas o fato é que a humanidade conseguiu ir à Lua - e que tal façanha é o resultado do trabalho feito ao longo dos séculos por mentes brilhantes da física e engenharia. O ser humano não é apenas um bobo iludido, ou não é sempre. A história tem razoável oferta de conquistas que um dia foram desdenhadas do mesmo modo. Isso me ocorreu enquanto visitava o Catavento, um museu recém-instalado no Palácio das Indústrias que, até certo ponto, é o Museu de Ciências que São Paulo insistia em não ter. Era feriado e o local estava lotado de pais com crianças vendo fenômenos da natureza em instrumentos que raras escolas têm, uma contribuição inestimável. Há quatro seções: em "universo", estão painéis e maquetes sobre o sistema solar, explicações do que é quasar ou big-bang, etc.; em "vida", vemos o corpo humano, a teoria da Evolução, aquários e microscópios; em "sociedade", aplicações das descobertas em laboratórios e cotidiano; e em "engenho", uma série de aparelhos que demonstram o comportamento de corpos em movimento, efeitos da luz sobre a cor, a ação de lentes e prismas. Há até uma "sala de ilusões", com exemplos de arte óptica. Um problema é que os corredores têm pouco espaço de circulação e tudo logo adquiriu um ar de parque de diversões. Uma parede para escalada, por exemplo, levava as crianças até quadros no alto com áudios de grandes personagens como Leonardo da Vinci, mas obviamente elas não paravam para escutar direito. Hoje vivemos um tempo em que se faz todo o possível para rimar conhecimento com entretenimento, mas a maior vítima é o silêncio, sem o qual não há muita concentração. No Museu do Futebol a quantidade de tecnologia interativa e cenários se justifica, mas me pergunto se o Catavento não poderia ser menos acelerado. Outro problema é o nível muito básico das informações, mas num país e num Estado onde a educação pública vai tão mal é difícil exigir alternativa. De qualquer modo, a aventura e o esforço de todas aquelas descobertas são um contraponto ao negativismo em que Mencken e tantos seguidores de Nietzsche e Schopenhauer caíram. Paulo Francis, aliás, me apelidou de Schopenhauer porque eu "tinha 26 anos e estava cansado da vida". Nunca estive realmente cansado da vida, mas é verdade que a leitura de Mencken e de eruditos como George Steiner - que acaba de completar 80 anos e lançar a preciosa coletânea de seus ensaios na revista The New Yorker - me levaram a uma fase de pessimismo exagerado, a uma desesperança em relação à cultura do meu tempo, em que tantas pessoas - mesmo as ditas educadas - não querem saber de nada complexo, de nada que exija que saiam de sua preguiça intelectual diária. Com o tempo fui vendo que essa crise cultural não é o apocalipse pregado por tantos pensadores do século 20. Se você ler juntos Modernismo, de Peter Gay, e O Resto É Ruído, de Alex Ross, agora lançados no Brasil, terá de novo essa sensação de que não vivemos um grande momento nas artes e ideias. A inquietude modernista, o vigor cerebral da arte de Proust, Mann, Joyce, Picasso, Matisse, Stravinski e tantos mais, para não falar de Einstein, Bohr, Dirac e outros cientistas das primeiras décadas, faz muita falta. Mas, simultaneamente, vemos que esse período nada deixou a dever para o Renascimento ou o Iluminismo. Talvez estejamos apenas em sua ressaca, curtindo o modernismo diluído mas íntegro de Roth, McEwan, Pärt, Kiefer e poucos mais. Em minha visão, a mentalidade moderna começou antes ainda, em meados do século 19. Digamos, em 1859. No mesmo ano em que Darwin mudou tantas noções com um único livro - noções do que é a vida, o tempo e a moral -, Wagner compôs a ópera Tristão e Isolda. Nunca mais a música, o pensamento e o comportamento humano seriam os mesmos. Nessas obras, afinal, há também um engenho, uma engenhosidade que nos fascina em si mesma. Em Wagner, o uso de intervalos harmônicos antes "proibidos" e de um desenvolvimento tenso, em ondas melódicas que parecem nos levar até a beira do abismo em que o casal mergulha, é um triunfo técnico. Ele não explica 100% o motivo por que, certa vez, acordei de madrugada tendo a certeza de que ouvia a ópera, a tal ponto que andei até a sala para ver se tinha esquecido o aparelho de som ligado (não tinha). Mas examinar a riqueza da linguagem é parte integrante do prazer estético. O que acho que aconteceu é que muitos intelectuais modernos foram contra a modernidade histórica, ainda que tenham criado a modernidade mental. James Wood, na mesma New Yorker, notou isso recentemente sobre George Orwell. Ou pense na crônica brasileira, inclusive de Machado de Assis e Rubem Braga, e sua aversão genérica ao progresso urbano. Mesmo cabeças como a de Orwell ou a de Sérgio Buarque de Holanda, que resistiram à dicotomia entre marxistas e fascistas nos anos 30, não acreditaram que a democracia capitalista, liberal, fosse conduzir a um mundo menos bárbaro - medo que a Segunda Guerra pareceu ter confirmado. Mas o fato é que há mais paz e liberdade hoje. E mais importante: isso tem a ver com os achados de muitos cientistas e artistas. Não existe essa oposição diametral entre naturalismo e humanidades que é tão mencionada entre estudiosos da cultura como Walter Benjamin e Claudio Magris. Admirar-se com a natureza imprevisível e interligada que Darwin descreveu ou com essa invenção que é o satélite, por exemplo, é uma satisfação semelhante à que nos dá a elegante densidade de Shakespeare, Rembrandt ou Beethoven. É a satisfação de ver que podemos reagir de algum modo às nossas primeiras impressões e encontrar padrões mais sutis sob a superfície ao redor. Além disso, se o progresso traz tanto problemas como melhorias, não temos por que preferir um mundo estagnado, amarrado a dogmas e privilégios. É um erro fazer pouco caso do que se aprendeu a tanto custo - inclusive sobre a inclinação humana para a crença no irreal. Podemos sair da sala das ilusões. Uma vez escrevi, sobre o filme de animação Ratatouille, que uma diferença fundamental entre a espécie humana e os outros animais é que ela tempera e combina os alimentos. Ou você já viu o leão pondo alecrim na gazela? Um leitor mandou email indignado que eu visse uma diferença tão pequena. Nada disso. Pequenas variações podem causar grandes efeitos, e experimentar esse infinito rearranjo é uma receita de boa existência. Sempre me perguntam "em que você acredita, então?", já que não tenho religião nem utopia e rejeito a tese conservadora de que a natureza prefere a rotina à mudança. Aí está: acredito num humanismo sem credulidade, criativo e crítico, temperado entre os deveres e os prazeres. A humanidade não está previamente condenada nem ao céu nem ao inferno. Logo, não precisa ser salva; precisa ser exercida. POR QUE NÃO ME UFANO (1) Os exageros a respeito de Susan Boyle, a dona de casa feia que se revelou dona de uma bela voz num programa de calouros inglês, pouco têm a ver com a discussão acima. Primeiro, porque ela não é a única; o mesmo programa tinha "revelado" Paul Potts, hoje um cantor de ópera pouco respeitado. Segundo, porque a espontaneidade do vídeo é forjada, pois os jurados - entre eles o já produtor da cantora - sabiam o que veriam e ouviriam. Assim como Potts, ela já tinha feito aulas. Sim, fico feliz quando um talento vence preconceitos e faz sucesso. Mas a maneira é lamentável, e que tantos se digam "comovidos" com Boyle soa como confissão de preconceito. POR QUE NÃO ME UFANO (2) Como sempre, a uma pressão da sociedade e/ou da mídia, o Congresso reage com medidas supostamente moralizadoras. Revelada a farra com as passagens aéreas, ele decidiu agora que elas não podem ser dadas a familiares e amigos e que as despesas serão mostradas na internet. Mas peraí. Isso já era para ser assim, não? Essas regras já não estavam expressas nas leis deste país, a começar pela Constituição? O que queremos saber é, primeiro, se vão ser cumpridas e, segundo, como os absurdos já cometidos serão punidos. Fernando Gabeira, como Pedro Simon, não é um Renan Calheiros - é importante que as distinções sejam feitas, para não cairmos no cinismo vazio e muitas vezes conveniente do "político é tudo f.d.p." - e teve pelo menos a vergonha de confessar seu erro em vez de dizer que "não é ilegal". Mas, para realmente se distinguir dos tubarões, precisa devolver o dinheiro público equivalente ao que sua filha gastou surfando no Havaí. Só assim as exceções podem ser levadas a sério e, aos poucos, ter alguma voz. Aforismos sem juízo Arte é diálogo entre a regra e sua quebra. ''Nosso tempo faz o possível para rimar conhecimento e entretenimento, mas a vítima é o silêncio'' ''O fato é que há mais paz e liberdade hoje. E isso tem muito a ver com os achados de cientistas e artistas''

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