Em noite de Ravel, suíço surpreende

Uma peça de Michael Jarrell, regida pelo polonês Janowsky, seduz os paulistanos

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Seria inútil fazer uma enquete com a platéia presente na Sala São Paulo ao primeiro concerto da Orquestra da Suisse Romande na segunda-feira passada, dia 4: todo mundo estava lá para curtir Maurice Ravel. De fato, 80% da música daquela noite foi preenchida com suas obras muito conhecidas. Mas, acreditem, o inesperado aconteceu. Os 20% desconhecidos, contemporâneos, é que justificaram a noite: ...O Céu, Ainda Há Pouco Tão Límpido, de Súbito Turvou-se Horrivelmente..., do compositor suíço Michael Jarrell, de 51 anos, é daquelas obras de música viva que atraem a atenção à primeira audição (era o meu caso), tamanho o seu poder de sedução sonoro. O que me atraiu não foi mero hedonismo, mas o modo como a obra contrastava ambiências sonoras, abusava de uníssonos e repetições, mas ainda assim não parecia tonal; revelava um extraordinário domínio da escrita orquestral; e concedia largo destaque a uma ampla e diversificada percussão. Não era espectral, muito menos minimalista ou neoclássica. Dele, só conhecia três orquestrações de estudos para piano de Debussy, num recente CD da Orquestra de Lyon, lançado pela Naxos em novembro do ano passado. Três orquestrações diferenciadas e surpreendentes: a do estudo nº 9, das notas repetidas, que abusa das oitavas; do estudo nº 10, chamado de Sonoridades Opostas, que é um sutil agenciamento de planos sonoros; e o estudo nº 12, Pour les Accords, cheio de acordes maciços. Pois ouvi-las logo após ter escutado ao vivo ...O Céu me deu algumas das chaves para compreender essa obra sinfônica bem mais ambiciosa e recente. O enquadramento conceitual restante obtive na leitura de um excepcional artigo de Philippe Albèra, de 2006 (no livro Le Son et le Sens, Ed. Contrechamps, Genebra, 2007). Jarrell é ex-aluno de Eric Gaudibert em Genebra, de Klaus Huber em Freiburg e teve extensa passagem pelo Ircam de Pierre Boulez, em Paris. Pertence à geração que surgiu nos anos 80 e felizmente não mais vive naquela angústia vanguardista das décadas anteriores (ao menos na Europa). Mas também não se lambuza com a tonalidade. Albèra escreve que "Jarrell ocupa uma posição mediana na paisagem contemporânea". E o que isso quer dizer? A obra que ouvimos no concerto explica. Como seu próprio título, emprestado de Lucrécio, indica, a encorpada peça de quase 20 minutos primorosamente interpretada pela Suisse Romande usa o que Jarrell chama de "notas pivô", em torno das quais "imagens acústicas" se constroem num fluxo contínuo, a partir de intervalos e choques de timbres que se congelam e em seguida se desfazem. Mas isso não torna a escuta difícil. Ao contrário. Os jogos de timbres, as mínimas transformações do discurso sonoro, as ressonâncias e as oposições bruscas de tempo são interessantes, mesmo para quem a escuta pela primeira vez. Isso acontece, escreve Albèra, porque há "em Jarrell uma predileção pelos momentos em que a música se imobilizae sobre uma nota, um intervalo, ou sobre sutis modificações de timbres, como se se observasse a si própria, recusando-se a avançar". Nosso guia Albèra, numa expressão muito feliz, escreve que, por meio dos recursos descritos, a música de Jarrell "devolve ao ouvinte uma bússola para que ele não se perca" da música. Quanto aos 80% de Ravel constantes do programa, houve dois tempos distintos. Jean-Yves Thibaudet e a orquestra foram magníficos no refinadíssimo concerto em sol de Ravel. Como um gato, o piano preciso de Thibaudet passeava dialogando com a orquestra - esta sempre leve, muito leve, quase suspensa (exceto no final). O maestro russo Marek Janowski já havia me conquistado apenas com suas declarações sinceras na entrevista ao Estado - exceção completa à regra de músicos que agem como jogadores de futebol, só dizem o óbvio em entrevistas, jamais se arriscam. Sua regência foi precisa, exata, tanto em Jarrell quanto no concerto em sol. Na segunda parte, inexplicavelmente, o tônus da orquestra baixou de modo abrupto. Maestro nenhum conseguiria levantar aquele astral frouxo. As notas estavam todas lá, não houve nenhum problema técnico nas Valses Nobles et Sentimentales nem em La Valse, tocadas como se fossem uma só obra, hábito herdado de Charles Munch. Mas as execuções foram rotineiras, burocráticas - e, sabe-se bem, a música de Ravel não resiste a leituras movidas a piloto automático.

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