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Em Kurt Masur, vida e música são uma só coisa

Adventures in Listening, de Amit Breuer, mostra ao filmar aulas do maestro a relação entre a arte e os seus conflitos pessoais

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Por João Luiz Sampaio
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Campos do Jordão, Brasil, julho de 2005: "Mahler é desespero, mas você o faz harmonioso demais." Breslau, Polônia, setembro de 2005: "Como regente, você jamais pode aspirar a ser um vencedor." Nova York, janeiro de 2006: "Nenhuma vida começa trágica." Três frases aparentemente soltas ganham sentido único na voz de um homem, o maestro Kurt Masur. Aos 82 anos, ele é o último herdeiro da grande tradição de regentes alemães. Em plena atividade, corre o mundo interpretando obras de Brahms, Mendelssohn, Beethoven, Mahler. E aproveita os intervalos para orientar jovens regentes, atividade retratada pela diretora Amit Breuer, que o acompanhou nessas viagens e preparou o documentário Adventures in Listening, que estreou na semana passada em Leipzig, na Alemanha. Os cabelos brancos, os quase dois metros de altura, o olhar sério, sisudo. Ao longo do documentário, co-produção entre Canadá e Brasil a que o Estado teve acesso exclusivo na semana passada, a figura de Masur assusta, em especial quando ele tenta corrigir seus alunos. Mas ele então abre um enorme sorriso de satisfação quando sente que foi compreendido; e, mais tarde, ao conversar com jovens músicos, o olhar bravo dá lugar à candura no momento em que se lembra do início da carreira, da mesma forma que é invadido por lágrimas contidas quando recorda alguns episódios marcantes de sua biografia ao tentar explicar como determinada peça deve ser interpretada. "Quando comecei a fazer o filme e estive em Campos do Jordão, pensei em um documentário que contemplasse três gerações de maestros, ali reunidas: Masur, Roberto Minczuk, diretor do Festival de Inverno e seu ex-aluno, e os jovens estudantes de regência. No entanto, o filme foi me levando em outra direção. Há algo de profundamente pessoal na maneira como esse homem sente e vive a música. De alguma forma, música e vida são para ele uma só coisa. E o documentário acabou falando disso, da capacidade de Masur de falar da própria vida pessoal por meio das partituras que interpreta", diz a diretora israelense Amit Breuer ao Estado, um dia depois da estréia do filme no Festival de Documentários de Leipzig, cidade onde Masur dirigiu a orquestra do Gewandhaus. Masur fala no documentário de episódios marcantes de sua biografia, como o envolvimento político na então Alemanha Oriental ou a descoberta da doença nas mãos, que o impediu de seguir a carreira de pianista e o levou à regência. O momento mais tocante, no entanto, é quando ele, em Campos do Jordão, fala do acidente de carro em que perdeu a mulher e provocou a morte de mais duas pessoas. Após uma tarde de ensaios, ele se reúne com os músicos e tenta explicar uma passagem do Adagio de Barber. Em resumo, o que acontece é que as cordas seguem em direção a um clímax de enorme tensão, seguida por uma pausa; na retomada, a tendência dos regentes é assumir uma interpretação mais pacífica, como uma resolução. Não para Masur. "Quando me lembro do acidente que tive, há um momento que não me sai da mente. Eu estava dirigindo quando ele ocorreu. Em instantes, vi minha mulher desacordada do meu lado. E então minha filha, que estava no banco de trás, olhou para mim e soltou um grito profundo. Jamais pude esquecer esse grito." O clímax das cordas no Adagio parece soar para Masur como aquele grito. Como acreditar em uma resolução após aquilo? É claro que há nessa interpretação um componente profundamente pessoal. Masur, no entanto, sabe como transformar sua experiência, e seu sofrimento, em lições que podem ser apreendidas por qualquer pessoa. Acompanhando um aluno na regência da Sinfonia Escocesa de Mendelssohn em Breslau, ele relembra que naquela música está a biografia de Mary Stuart. Estamos no começo da sinfonia. "Não, não. A vida dela foi intensa, digamos assim, mas, entenda: nenhuma vida começa trágica." É preciso aceitar, em outras palavras, que a vida não assume formas definidas. É no contraste entre momentos díspares que se forma a personalidade de um homem. E, conseqüentemente, da música que ele compõe e interpreta. "Não, não, não busque a harmonia. Mahler sofreu intensamente. Não quero que você sofra tanto quanto ele, não te desejo nada de mal. Mas entenda que a felicidade foi sempre um conceito abstrato para ele. Entenda o sofrimento do compositor", diz ele a um aluno em Campos do Jordão. Meses depois, ele completa a lição, agora na Manhattan School of Music, em Nova York. "Ame Bruckner mais do que a você mesmo. Olhe para ele, entenda o que tem a dizer e encontre em você o sentido da música. Você não pode aspirar a ser um vencedor quando está regendo." De volta a Campos, ele conclui a um estudante brasileiro o seu credo do que deve ser um maestro. "Não seja um ator, seja verdadeiro", diz, corrigindo sucessivas vezes a interpretação do Adagio. "Não, você não está sendo autêntico, está interpretando." A câmera se mantém fixa no rosto dos dois maestros. "O documentário ganhou cores novas à medida que fui coletando material. Mas, ali, eu já tinha certeza, três anos atrás. A cena era ouro puro", diz Amit. "A autenticidade de Masur, e sua capacidade de reconhecê-la em outras pessoas, sempre me impressionou", diz a diretora. Como explicá-la? "Conversando com ele, entendi que essa era uma influência de sua mãe e da maneira como se relacionava com os filhos." Amit, então, filma um passeio que Masur faz com sua mulher, Tomoko, por Brieg, pela cidade de sua infância, e junta essas cenas a trechos de filmes feitos pelo maestro na primeira metade do século 20. "A força interior de Masur transformou um filme sobre o trabalho do regente em algo maior, na biografia emocional de um homem que viveu a música." Não é apenas nas salas de aulas que Masur oferece lições. Produtor brasileiro quer fazer versão nacional do filme EM DVD: Produtor da Tatu Filmes, Claudio Kahn conta que foi procurado por Amit Breuer para auxiliar na parte brasileira do documentário. "Ela precisava de auxílio para operacionalizar as filmagens em Campos do Jordão e demos apoio a ela nesse processo", conta. Kahn acompanhou de perto as filmagens no País e, com a diretora Amit, viu "um filme sobre master classes transformar-se na biografia" de Masur. O bom resultado na estréia alemã faz com que Kahn acredite na possibilidade de, em pequeno circuito, levar o filme aos cinemas brasileiros. "Temos um público fiel que se interessaria por ele", diz. O plano, porém, é ao menos lançar o documentário em DVD. "Se conseguirmos patrocínio, pretendemos fazer um DVD duplo: um disco com o filme da Amit e um com outro documentário, feito apenas com o material gravado no Brasil. Ao todo, são 22 horas com um material de interesse gigantesco." Masur Em Discos BEETHOVEN - AS SINFONIAS: Masur é intérprete renomado da obra sinfônica de Beethoven, compositor a que se dedicou desde o início da carreira. Em sua passagem como diretor da Filarmônica de Nova York, lançou pela Teldec discos com todas as suas sinfonias. A integral gravada com a Gewandhaus de Leipzig, porém, é a melhor opção por mostrar o bom relacionamento do maestro com a orquestra com que mais tempo trabalhou (selo Phillips). BRUCKNER: Um dos primeiros regentes a se dedicar intensivamente à obra do compositor, Masur gravou, também a Gewandhaus, a integral sinfônica de Bruckner. Sua interpretação nem sempre agrada aos fãs do compositor, mas não se pode dizer que Masur não tenha em mente uma visão clara das "grandes catedrais sinfônicas" escritas por ele. O selo é o RCA e, recentemente, os discos foram agrupados em uma caixa promocional, com preço acessível, mesmo que em edição importada. ARIADNE AUF NAXOS: Bom exemplo da relação do maestro com o repertório operístico é a gravação da ópera de Richard Strauss. Também de Strauss, as Quatro Últimas Canções com a soprano Jessye Norman merecem destaque na discografia do compositor. SINFONIAS: Com a Filarmônica de Nova York, Masur repassou em gravações as principais obras sinfônicas de Brahms, Tchaikovsky e Dvorák. Os registros de Mendelssohn merecem especial destaque: o maestro criou, inclusive, uma fundação para divulgar a obra do compositor, que considera injustiçada. VARIADOS: Ravel e Debussy aparecem em dois discos de Masur com a Filarmônica de Nova York. Em Leipzig, ele gravou a Missa Glagolítica de Leos Janácek, ao lado do Coro da Rádio de Praga. Em DVD, poucas opções - o destaque é o concerto de fim de ano do Teatro La Fenice, em 2006.

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