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Em companhia do gênio Beethoven

Primeiros dias da Folle Journée, no Rio, oferecem inúmeras possibilidades de diálogo entre as obras do compositor e o público

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

A obra de Beethoven costuma ser dividida em três períodos. O primeiro o mostra influenciado pelos compositores do classicismo, Mozart, Haydn; no intermediário, o heroísmo aparece como tema, etapa de uma transformação em direção à maturidade, quando ele oferece inovações formais aliadas a uma expressão profundamente pessoal. O que acontece com os grandes gênios, porém, é que qualquer categorização apenas se aproxima da realidade, muito mais complexa do que nossa necessidade de teorizar sobre ela. E isso tem ficado claro ao longo dos primeiros dias de programação da Folle Journée, festival que, desde a noite de quarta, tem ocupado sete palcos do Rio com concertos dedicados à obra do compositor. O formato da Folle Journée é muito estimulante. Até amanhã, serão realizados 48 concertos. São apresentações de cerca de uma hora, pelas quais estão se espalhando a integral das sonatas para piano, dos quartetos de cordas, além de sinfonias, concertos para piano e assim por diante. São inúmeras as relações possíveis. Você ouve, por exemplo, a Sonata nº 22, o Concerto para Piano nº 3, a Quinta Sinfonia. São obras do período médio, que apontam na direção da maturidade do compositor. Mas, então, você acompanha a execução do Quarteto nº 1, uma das primeiras obras de Beethoven, ou ainda o Trio nº 2 - e nos movimentos lentos está a semente de um caráter expressivo muito rico, a semente da revolução beethoveniana. Mais do que isso, no entanto, vale perceber que as relações a serem feitas não precisam necessariamente ser intelectuais, referindo-se ao arco composicional de Beethoven, à sua evolução das formas do classicismo à fundação da escola romântica. De concerto em concerto, a música vai entrando em nossas mentes e, aos poucos, forma um quebra-cabeça de sensações que, no final das contas, cria dentro da gente uma idéia pessoal e intransferível do que foi a obra de Beethoven, do significado de sua arte. E, na sua busca pelo diálogo, pela valorização de tudo aquilo que é humano - seja a força, a luta, a crença, o sofrimento ou a dor - sua arte tem algo a dizer a qualquer pessoa. Em meio à profusão de concertos - o ritmo é frenético, o público corre de uma apresentação à outra, de um teatro a outro e isso é parte da graça do festival - você também começa a pensar sobre a memória das obras apresentadas. A história de uma peça, de uma partitura, é também a história das interpretações que ela recebeu ao longo dos anos. Se para o público essas obras sugerem o diálogo com o sentimento de nossa época, vale lembrar que os artistas também são frutos desse tempo e, por meio da técnica, recriam as peças à luz de sua experiência. O programa de abertura teve o Concerto para Piano e Orquestra nº 3 e a Sinfonia nº 5, no Municipal, com a Sinfônica Nacional regida por Lígia Amadio e o pianista Eduardo Monteiro como solista. A Quinta e seus célebres momentos iniciais - pã-pã-pã-pãããã - estão completando 200 anos. Na escolha de dinâmicas da maestrina, essa combinação de notas continua despertando mistério e encantamento. Nas mãos de Eduardo Monteiro, o concerto ganha interpretação tecnicamente irrepreensível, sempre concentrada, quase austera; na quinta pela manhã, no entanto, sua Sonata Apassionata, na Sala Cecília Meireles, começa a se abrir ao imponderável do sentimento humano. No mesmo teatro e piano, outro instrumento surge nas mãos de Jean-Efflam Bavouzet, com uma Patética em que os silêncios e pausas são atropelados por uma destreza técnica fora do comum ainda à espera de maturidade. Ao lado, na Igreja Nossa Senhora do Carmo da Lapa, o Quarteto Ysaye iniciou a série integral dos quartetos do compositor - é música de câmara de grande qualidade, com diálogo que jamais perde a intensidade entre os intérpretes. O mesmo vale para o Trio Wanderer, que iniciou a série dos trios do compositor, que continua hoje no Municipal com o Arquiduque de Boris Berezovsky, Alexander Kniasev e Dmitri Makhtin; também hoje, as sonatas para violoncelo e piano, com Menahem Pressler e Antonio Meneses, na Sala Cecília Meireles. Parece incrível mas, após um dia com seis, sete, oito concertos na cabeça, não dá para pensar em outra coisa: que venha mais Beethoven!

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