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Em busca do Proust perdido nas entrelinhas

Leitura de Leda Tenório da Motta não descarta o lado paródico do escritor

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Proust queria construir uma catedral gótica com seu romance Em Busca do Tempo Perdido, mobilizando para isso um repertório erudito. Não é, porém, esse Proust das belas-artes que interessa ao livro da professora Leda Tenório da Motta, Proust: A Violência Sutil do Riso, mas o escritor que começa fazendo pastiches das velhas glórias nacionais da rive droite com a intenção de chegar à outra margem do rio, à rive gauche, onde estavam concentrados os primeiros autores da Gallimard, que o esnobaram. Sobre esse e outros temas a professora fala na segunda parte de sua entrevista ao Estado. Como Philip Roth, que diz não ser um escritor judeu mas um escritor que, casualmente, é judeu, Proust tampouco parece preocupado com sua origem semítica. Tanto que não batizou seus personagens com nomes judeus, apesar de todo mundo saber que Swann, por exemplo, é uma caricatura do socialite Charles Haas. Ou seja, ele ainda goza de seus pares. É nesse sentido que a senhora fala do humor judaico de Proust? Tenho um filão de reflexão em paralelo ao trabalho do Proust: são estudos a respeito das literaturas de testemunho que saem hoje em cornucópia, relatos de sobreviventes de campos de concentração. Tenho me deparado com teóricos do gênero que insistem na seguinte questão: eles se pautam pela idéia de que não se deve brincar com essas literaturas de testemunho, justamente pelo dever de que elas têm de testemunhar a respeito de coisas históricas que podem se perder - e não devem se perder nunca até por conta dos negacionismos. É uma lei do gênero. Critico um pouco essa idéia de literatura de testemunho, porque a grande literatura é sempre de testemunho e isso me levou a pensar no testemunho do Proust sobre os judeus. A literatura do Proust é um grande testemunho sobre a questão judaica no nascedouro. Como vai dizer Hannah Arendt, o caso Dreyfus é o prelúdio do nazismo. No nascedouro da coisa, por ser uma literatura interessada em tudo e em todos, é também fortemente interessada nessa e em outras questões, como a homossexualidade, porque os salões que ele freqüenta são antros de anti-semitismo e homofobia. Tanto que rola uma comédia em torno dos grandes gays proustianos, porque estão sempre escondendo aquilo que são, a começar pelo narrador. A questão me interessa porque essa literatura de testemunho à moda do humor judaico é a maneira mais eficiente de denunciar a injustiça e a fobia - que os psicanalistas diriam sexual - contra os judeus. O humor judaico nasce no século 19 pela necessidade que os judeus encontram de se defender das perseguições que começam aí modernamente, um humor que, no século 20, desemboca no cinema de Woody Allen. Fazendo pouco de si mesmo, eles restauram o seu narcisismo ferido. Eles riem das próprias mazelas para ironizar a maneira como o mundo externo os vê. Rir de si mesmo é um antídoto contra o mal de se ver segregado. É assim que eles vão manter intacta a cultura judaica nos anos de perseguição mais violentos, o que é bom e também ruim, porque esse fechamento dentro da própria cultura tem sido objeto de crítica inclusive do Philip Roth, que escreve como um não-judeu. Como Proust. Uma trágica ironia da cultura é que os judeus forjaram o ídiche como uma alternativa moral à civilização alemã, como uma reação à forma de dominação. Como a senhora relaciona o advento do ídiche como língua autônoma de autoproteção e o desenvolvimento do humor judaico? É uma relação umbilical. Sartre fala disso em Reflexões sobre a Questão Judaica. Proust trabalha num meio social anti-semita. Aliás, o anti-semitismo é inventado justamente para que a França possa se restaurar por sua vez da guerra perdida contra a Alemanha. E é nesse meio, no final do século 19, que se consolida essa veia do riso auto-referencial, do rir de sei mesmo. O operador desse riso é o ídiche. O cômico tem sempre a ver com a questão da contradição e o ídiche é uma contradição em si, por ser a língua também de um dos algozes mais violentos que os judeus tiveram. Baudelaire fala que o riso é satânico porque no cristianismo não se ri e que o homem é necessariamente risível por ser duplo. O lance do cômico está sempre ligado à duplicidade. Só há gargalhada onde alguma coisa da ordem da ironia se manifesta. Muitos autores judeus tentaram escrever em ídiche e jamais conseguiram, como Kafka, provavelmente enfrentando esse mesmo dilema de estar dividido entre duas culturas sem se decidir por uma delas. Esse foi também o problema de Proust? Kafka é bem mais torturado. Ele se passa todo entre o judaísmo, a língua alemã e o mundo eslavo. A literatura de Kafka é extremamente enxuta, bloqueada. Os nomes são quase cifras mínimas, letras. Proust é a literatura do torrencial. É um não terminar nunca de dizer, uma frase que não se acaba, um ciclo que não se acaba e um romance que, quando termina, mal está começando. É uma sinfonia inacabada. Já o Kafka é uma literatura do não conseguir dizer, do texto emperrado, da negação do texto, da ordem de não publicar, de um autoconfisco que está no Proust de modo genial. Embora tenha trabalhado demais com a cultura da mãe, ele se sente absolutamente francês. Proust foi batizado no catolicismo. É o sujeito das solenidades católicas, das festas da Páscoa, dos sinos, alguém que quis construir um romance dentro da metáfora da catedral. Kafka estava totalmente mergulhado no desespero do não-pertencimento. Já Proust está totalmente posto na comédia do pertencimento. Kafka está mais para Paul Celan. Proust, mais para a comédia da consciência dividida - ser e não ser judeu. Da mesma forma que Stéphane Heuet assina uma livre adaptação para quadrinhos da obra de Proust, a senhora propõe uma leitura do Proust que não passe pelo viés católico da família Mauriac. Por quê? Quando o romance começou a sair em quadrinhos, Gilles Lapouge escreveu no Estado que os professores franceses não admitem que se ria de Proust, observando que o seu romance merece ser lido pela linha do humor. Eu diria que também no Brasil isso acontece. Ao ser lançada a revista Clima, no início dos anos 1940, Ruy Coelho tornou-se o primeiro comentador brasileiro de Proust no Brasil, escrevendo um ensaio na linha dos escritores católicos franceses. Nesse ensaio, ele cita Mauriac, que fala de Proust como o escritor do resgate do tempo perdido pela visão da eternidade, quando a vanguarda francesa da Gallimard e da Nouvelle Revue Française já chamava a atenção para o humor de Proust em 1922. E, não se deve esquecer que, desde o começo, Proust diz que quer escrever um livro que fosse como uma catedral gótica, imponente e grave, mas também que quer escrever um livro que fosse como o assado de caçarola que a empregada Françoise fazia ou, ainda, como um vestido bem cortado. Alphonse Daudet achava que Proust era o próprio demônio. Paul Claudel não tinha lá uma visão muito diferente, embora usasse adjetivos menos carregados. Em que medida Em Busca do Tempo Perdido responde às provocações dos desafetos do escritor? Na abertura de meu livro, faço uma pequena arqueologia da literatura francesa. Quando você entra no nicho da Gallimard, vemos que ali a barra era pesadíssima. Gide já começa por descartar o romance e, segundo uma lenda, citada por vários biógrafos, não teria sequer aberto o pacote que a empregada de Proust levou à editora, justamente por considerar Proust um pequeno dândi de salão sem nada a ver com o projeto literário deles, que era o negócio helênico do Gide de abrir as amarras, inclusive da vida gay. E ali a barra é pesada porque, desde o mentor intelectual do grupo, Gide, até os outros, Paul Valéry e Cocteau, são todos antiproustianos antes de se converterem a Proust. Todos eles lançaram farpas contra Proust. Como um dos veios cômicos do romance do Proust é desconstruir o próprio romance, e como essa gente estava se impondo muito como um novo modelo de prosa na França, pertence à colher torta de Proust lançar um olhar de ironia para esses modelos que vão se instalando. Da mesma forma que ele é visto como um escritor reacionário da rive droite, você tem farpas endereçadas ao modelo da rive gauche em Em Busca do Tempo Perdido. Aquele lugar simbólico a que ele mais gostaria de pertencer conforme vai se dando conta de que é um escritor que deve ser levado em consideração, é o lugar que o rejeita até o fim. O antidreyfusista Valéry e Proust se detestavam mutuamente. Valéry está num campo oposto ao do Proust e este vai lançar farpas contra ele em sua correspondência e no seu romance. Dentro da genial mistura de vida e ficção que tem no romance de Proust, há ali uma resposta também aos escritores e à maneira como eles o vêem como reacionário, embora cada vez mais dispostos a admitir que ele escreve bem. Essa imagem de reacionário e alienado é reforçada quando se reduz a um diálogo constrangedor o encontro de Proust e Joyce no Hotel Majestic, em 1922, justamente o ano em que Ulysses foi publicado e solenemente ignorado por Proust. Não é falsa essa idéia de que ele não deve nada à literatura inglesa? Alguns acham que o humor do Proust, além de proceder do Baudelaire, procede do humor inglês. Ele teria alguma dívida com Oscar Wilde. Proust freqüenta esse universo de língua inglesa, mas parece que ele e Joyce eram grandes demais para poder dar conta um do outro. Cada um estava fazendo sua revolução. São infinitos os trabalhos que mostram que se está diante da mesma virada, uma literatura voltada para a própria literatura, tendendo a ser infinita. Ainda que Proust e Joyce não tenham se aproximado em vida, uma aproximação entre as duas literaturas é possível após a morte. Depois de Ulysses, tudo o que Joyce faz é genericamente ambíguo. São autores que não pertencem mais a gênero nenhum. Eles desconstroem as fronteiras do romance e da poesia. Proust cita Tolstoi, Dostoievski, os ingleses, traduz e pega o lado do crítico John Ruskin para ele. É muito menos francês do que as pessoas pensam que ele é.

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