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Em busca da moral perdida da América

Procedimento Operacional Padrão vai atrás dos culpados por violência no Iraque

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Na semana em que o mundo comemora os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, o mercado recebe um livro que trata justamente do desprezo por essas garantias fundamentais, Procedimento Operacional Padrão (Companhia das Letras, tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva, 336 págs., R$ 52). Seu autor, o jornalista norte-americano Philip Gourevitch, foi atrás dos soldados que há quatro anos apareceram arrastando pela coleira detentos da prisão de Abu Ghraib, perto de Bagdá, empilhando seus corpos nus em pirâmides, ameaçando-os com cães pastores e até simulando uma eletrocução. O resultado é um livro que não busca a vilificação desses soldados, mas o verdadeiros culpados pelas imagens degradantes veiculadas pela internet pelos próprios agentes das atrocidades. Gourevitch, por telefone, em entrevista ao Estado, defende que o grand-guignol de Abu Ghraib, antes de ser promovido por ações individuais, foi incentivado pela política de tratamento dos prisioneiros decretada de cima. Mais exatamente, pela Casa Branca. Em colaboração com o cineasta Errol Morris, autor de um documentário com o mesmo título do livro, o jornalista, editor da revista The Paris Review, entrevistou os jovens soldados americanos que participaram da macabra sessão de fotos em Abu Ghraib, concluindo que ela foi apenas mais um capítulo da "guerra ao terror" de Bush. Sua posição é bastante clara quando se refere à "guerra ao terror" de Bush e aos abusos contra prisioneiros de Abu Ghraib. Lembro de uma frase sua que a define bem: "Se você combate o terror com terror, de que forma saber qual é qual?" Como, então, imagina que Barack Obama vai encarar a chamada "guerra ao terror" decretada por Bush e, mais especificamente, o problema dos prisioneiros iraquianos? Primeiramente, devo dizer que Obama jamais comprou essa história de "guerra ao terror" vendida pelo governo Bush. Ele sempre se opôs à ocupação iraquiana desde o início e, inevitavelmente, vai tirar os americanos de lá. Acho que os nossos soldados foram instrumentos da política injusta e insana da administração Bush. Isso explica porque sou contrário à vilificação dos militares que tiraram aquelas fotos em Abu Ghraib e culpo o governo pelo escândalo na prisão. Obama tem outro discurso. Deixou claro que sua prioridade é mudar esse estado de coisas, essa mentalidade de que os iraquianos agiram pior que os soldados que posaram para as fotos em Abu Ghraib e, portanto, mereciam tal tratamento. Considero isso inaceitável. Não mandaria cortar a mão de nenhum deles, como na época de Saddam Hussein. Por outro lado, acho que a Al Qaeda é indefensável. É o oposto da liberdade. E, infelizmente, desde o atentado às torres gêmeas, Bush só fez o que os terroristas fazem, levando soldados americanos a torturar e a desrespeitar leis e convenções internacionais. Em Procedimento Operacional Padrão,você permite que cada envolvido no escândalo de Abu Ghraib apresente a própria história sem apontar o dedo para esses soldados que abusaram do poder de serem os responsáveis por esses prisioneiros. Essa estratégia teve como objetivo fazer com que o leitor sentisse compaixão por jovens instrumentalizados por um poder maior? Não diria que foi uma estratégia para aliviar o peso da responsabilidade que tinham ou perdoar as atrocidades que cometeram, mas queria fazer o leitor pensar sobre a origem dessas imagens que provocaram repulsa. O fato é que o que esses soldados disseram não foi publicado. A história oficial defendia que se tratava de um bando de loucos. Está certo, ninguém nega que o que eles fizeram foi abominável, mas agiram movidos pela política oficial de desrespeito aos direitos humanos, encorajados por ela. Mas por quê? A resposta a essa questão foi o que me motivou a procurar os militares envolvidos no caso. Você defende no livro que esses militares foram colocados numa situação de total desconhecimento da realidade local, começando por Lane McCotter, responsável pela reconstrução da prisão de Abu Ghraib, que ignorava a sua importância simbólica durante o regime Saddam, e terminando pelas mulheres envolvidas na história das fotos, Lynndie England e Sabrina Harman, que representavam, como militares do sexo feminino, uma dupla humilhação para os muçulmanos. Você diria que essas fotos são o resultado de uma política perversa das autoridades militares americanas? É preciso ter cuidado para não culpar os militares porque, afinal, eles servem ao governo e o governo americano é civil. Se os militares foram corrompidos, quem tem a culpa? Fazer coisas como treinar torturadores é crime, mas alguém deu autorização para lidar dessa maneira com os insurgentes e nunca é demais lembrar que as Forças Armadas estão no Iraque para assegurar o cumprimento das leis e convenções internacionais, como a de Genebra. Só que, no período de um mês, as regras de interrogatório de prisioneiros iraquianos foi mudada cinco vezes. A desumanização perpetrada em Abu Ghraib foi denunciada por muitos meios, mas há um, em particular, que circulou pelo mundo quando as fotos vieram a público na última semana de abril de 2004, provocando grande polêmica, um ensaio de Susan Sontag (trecho nesta página) no qual ela defende que a palavra "tortura" foi evitada pelos representantes do governo americano, incluindo aí o secretário de Defesa Donald Rumsfeld. Os prisioneiros de Abu Ghraib, segundo Rumsfeld, teriam sido vítimas de "abuso" e, eventualmente, de "humilhação", mas não de "tortura", segundo a versão oficial do governo. Como você reagiu na ocasião à fala do secretário? Rumsfeld é um tremendo mentiroso, um dos mais desastrados secretários de Defesa que os EUA já tiveram em sua história. Ele sabe que tortura é crime e não poderia jamais admitir isso. Claro que, se acontecesse comigo, diria que o que aconteceu foi uma tortura, mas não se eu fosse o secretário de Defesa dos EUA. Como se mede, afinal, a "intensidade" de uma tortura? Só um morto poderia dar um depoimento desses, o que é um paradoxo. Depois do que aconteceu em 2001, até a tortura Bush gostaria de legitimar, mas, afinal, vindo a público um episódio como esse, seu governo não poderia jamais admitir a palavra, que o colocaria em má situação em termos legais. Você escreveu um livro sobre os massacres de Ruanda, Gostaríamos de Informá-lo Que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias. A ensaísta Susan Sontag achava que recusar chamar de tortura o que aconteceu na prisão de Abu Ghraib é tão ultrajante quanto recusar que Ruanda testemunhou um genocídio. Você considera, então, que aqueles soldados fizeram o que fizeram por pura brincadeira? Pode parecer uma discussão retórica, mas não é. Discordo de Susan Sontag, porque o que aconteceu em Ruanda foi de fato genocídio, mas as fotos de Abu Ghraib não provam que se tratou de tortura. E, depois de tomar o depoimento dos envolvidos na história, posso mesmo afirmar que não. Essas fotos são o resultado de uma operação militar desastrosa, de cima a baixo marcada pela ignorância e alienação dos soldados. A relação entre Charles Graner, um dos envolvidos, com sua namorada Lynndie England, que aparece na foto do prisioneiro iraquiano com uma coleira no pescoço, é bem explorada em seu livro, em que você tenta entender por que razão eles sempre aparecem sorrindo para a câmera. Não lhe parece um tanto doente? Você diria que estamos assistindo a uma mutação antropológica quando vemos soldados empilhando corpos nus numa pirâmide como se fossem sacos de lixo? Não sei se podemos falar em mutação antropológica. As pessoas riem pelos mais variados motivos, usam as formas de expressão que estão ao seu alcance. Ao lado de uma pessoa torturada podemos até mostrar certa indiferença. Temos, portanto, de ter o cuidado de não sermos rígidos demais. Devemos nos perguntar primeiro o que faríamos no lugar desses soldados que estavam em Abu Ghraib. O único meio de preservar nossa sanidade é ver a barbárie como barbárie, e não como mutação antropológica. Segundo as regras militares, um soldado não pode desobedecer a uma ordem superior. Lembra da história do sargento Ken Davis no livro, levado a matar pessoas inocentes que não eram terroristas durante o motim em Campo Ganci? Quem pode suportar o estresse de uma guerra? O que você quer dizer é que a nossa não é particularmente uma era menos ultrajante que a de Dostoievski. Por que, então, os escritores contemporâneos têm tanta dificuldade para escrever sobre fatos como Abu Ghraib? Você acha que a ficção atual tende a ignorar pessoas reais? Onde estão os novos Norman Mailers dos EUA? Dostoievski escreveu sobre a Abu Ghraib do tempo dele de uma forma tão comovente não só por ter sido Dostoievski, mas por ter passado pela experiência traumática de escapar no último minuto de um pelotão de fuzilamento e ficar preso na Sibéria. A guerra do Iraque teve ótimos intérpretes , mas é preciso tempo para digerir uma experiência como essa e, ainda, disposição de estar no centro dos acontecimentos. Você falou em Norman Mailer e lembro que A Canção do Carrasco é, sim, comovente, mas diz respeito a um único criminoso comum, Gary Gilmore, enquanto escrever sobre uma tragédia coletiva é muito mais complicado. No meu livro não há nenhum caso especial, são todas pessoas comuns que praticaram atos incomuns . Escrevi sobre o que as pessoas não querem pensar, sobre como gente normal é levada a uma situação excepcional sem ter controle sobre ela. Que papel teve Errol Morris no livro? Não parece claro que você tenha conduzido todas as entrevistas. De fato, não. Morris fez a maior parte das entrevistas e eu fiz as longas pesquisas sobre as conseqüências legais dos acontecimentos de Abu Ghraib. Alguns dos personagens centrais, como Charles Graner, foram entrevistados por mim. As fotos de Abu Ghraib não são reproduzidas no livro, embora tenham sido publicadas em todos os jornais do globo e circulado pela internet. Essa foi uma decisão moral? Não, não foi uma decisão moral. Essas fotos são tão conhecidas como as do atentado às torres gêmeas. São fotos feias, poderosas, mas o que eu pretendia em meu livro era contar uma história sem imagens icônicas, capazes de distrair o leitor, um livro acima de tudo bem documentado e com depoimentos dos protagonistas.

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