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Eles fazem a nova música antiga

Jovens músicos vêem na visceralidade e na liberdade de interpretação o grande trunfo do gênero que tem início na Idade Média

Por Livia Deodato
Atualização:

Eles têm entre 19 e 33 anos e seus programas favoritos se alternam entre bater um bom papo acompanhado de comidas saborosas e assistir a filmes, principalmente europeus, no cinema e na televisão de casa, quando alugados (desenhos animados e o inesquecível Chaves também figuram na lista, mas não de forma unânime). O que diferencia esses jovens de outros mortais da mesma idade não é simplesmente o fato de se dedicarem à música há pelo menos dez anos, mas, sim, de terem escolhido dentro dela um gênero em que inexistem - ou são raros - registros de gravações sonoras históricas, textos que contextualizem as obras, fotografias e meras descrições de como produzir som em determinado instrumento. Estamos falando da música antiga, terreno até bem pouco tempo atrás explorado por contáveis músicos brasileiros, mas que parece ganhar força graças ao crescente interesse de jovens como esses da foto. As histórias variam um pouco por causa das escolhas de instrumentos que fizeram quando ainda eram crianças - para Raí Toffoletto, de 20 anos, por exemplo, foi muito mais fácil se aproximar do cravo, uma vez que estudou piano desde pequeno; ou para Leonardo Takiy, também de 20 anos, que desde os 7 se dedica ao violão e passou a estudar alaúde há um ano. Mas o motivo que os levou a se aprofundarem em um tipo de música desconhecida, até mesmo entre seus pares, parece se resumir a um só: o amor à primeira vista pelas músicas compostas essencialmente na Idade Média, no Renascimento e no Barroco. "Me encantei muito mais pela música barroca do que pelo instrumento em si, no meu caso, o cravo, que tem um mecanismo muito difícil: possui um controle digital muito fino e não responde de acordo com o peso que você aplica sobre as teclas, como no piano", diz Toffoletto. "É como uma harpa mecânica", compara o oboísta barroco Gustavo Henrique de Francisco, de 29 anos. "Ou um bandolim de teclado", acrescenta, aos risos, o violinista barroco André Costa, de 19. Frases que eles soltam brincando e que demonstram a capacidade que já adquiriram de fazer livres associações e seguir um dos fundamentos mais importantes do legado da música antiga - o de ir além dos tratados deixados por estudiosos ao longo de todos esses anos. "O nosso desafio é reconstruir a música feita nos séculos 17 e 18 partindo de documentos históricos, plantas de instrumentos com medidas certas, interpretações sobre os contextos em que os compositores viveram. Mas nunca vamos saber se ?soamos? como antigamente. Temos a vivência do século 20, 21", diz a dulcista (quem toca flauta doce) Giulia Tettamanti, de 24 anos. Por isso é que dizem que o estilo que alimentam atualmente deve ser corretamente chamado de música historicamente orientada ou informada. Daquela época, outro ponto que também os fascina é a liberdade que possuíam os intérpretes sobre quaisquer obras e que, no século 19, perdem esse poder para os compositores. "Não queremos só ser ?macaquinhos de repetição? do que está ali impresso na partitura. Nos preocupamos em pesquisar tudo o que estava por trás daquelas músicas", alfineta Toffoletto, muito discretamente. "É uma paixão mais intelectualizada e mais visceral", opina o flautista Camilo Di Giorgi, de 33 anos. A visceralidade a que ele se refere diz respeito, inclusive, a quatro tipos de "humores", aos quais os compositores se submetiam durante o processo de produção: sanguíneo, colérico, fleugmático e melancólico. Tudo em prol de que os discursos soassem persuasivos. No livro O Discurso dos Sons, o autor Nikolas Harnoncourt indica que se antes a música "era movimento e vida, hoje é algo simplesmente belo" e "quanto mais nos esforçamos para compreender e apreender esta música, mais percebemos quanto ela ultrapassa a beleza e quanto ela nos perturba e nos inquieta pela diversidade de sua linguagem". Atrás exatamente disso é que estão esses jovens, cujas atuações já estão marcando presença em festivais que igualmente proliferam por todo o País - e onde também descobrem talentosos parceiros e... futuros amores. Há histórias como a de Gustavo e Renata Pereira, casados há dois anos e meio, que se conheceram na Oficina de Música de Curitiba, em 2000; como a de Giulia e Toffoletto, que namoram há pouco mais de três semanas, desde que o Festival de Música de Londrina terminou; ou como o amor de Nathália Domingos, de 24 anos, e André Costa, que também nasceu na Oficina de Curitiba, só que na edição realizada em janeiro deste ano. Nem eles imaginavam que a música antiga fosse surtir tanto efeito.

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