Elegância ímpar, precisão de relógio

Luiz Henrique Lopes dos Santos faz importante introdução ao trabalho do matemático Gotlob Frege em O Olho e o Microscópio

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Por José Arthur Giannotti
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Gotlob Frege (1848-1925) é um autor quase desconhecido a não ser para iniciados em lógica matemática. No Brasil se tornou um caso raro. Quando a Abril Cultural publicou a coleção Os Pensadores, Frege foi incluído entre eles, aliás, numa notável tradução de alguns de seus textos. Um autor para iniciados foi, então, vendido nas bancas de jornal como se fosse uma revista de novelas, ocupou seu lugar numa prateleira e hoje um estudante de lógica mais aplicado pode encontrar, na biblioteca familiar, um auxílio precioso para seus trabalhos. Provavelmente a revista foi para o lixo dias depois de ter sido comprada. A seleção e tradução desses ensaios ficou a cargo de Luiz Henrique Lopes dos Santos, que preparava sua tese de doutoramento sobre Frege. A tese foi defendida em 1981, mas somente agora foi publicada, conservando a mesma estrutura, mas despojada das concessões inevitáveis num texto acadêmico. Resulta num livro de uma elegância ímpar, mas que funciona com a precisão de um bom relógio. Não pretende examinar toda a complexa obra de Frege, contenta-se em expor a articulação de seu primeiro opúsculo, Begriffschrift, publicado em 1879, título que Luiz Henrique traduz literalmente por "Conceitografia", insistindo de que se trata de uma descrição de conceitos lógicos. A dificuldade está no sentido muito peculiar que Frege atribui à noção de conceito. Lembremos que na segunda metade do século 19 houve uma revolução na lógica formal, produzida por autores como Boole, Schöder, que a renovou por inteiro. Depois de dois mil anos, desabou o esquema montado por Aristóteles. Segundo essa tradição, de uma maneira ou de outra, a verdade de uma proposição dependia do modo pelo qual esta articulava suas partes captando a articulação das partes do real, e a verdade de uma dedução dependia de como suas proposições se articulavam para reproduzir o movimento do concreto. Isto mutatis mutandis acontecia até mesmo com o idealismo, porquanto a representação, por mais que ela fosse subjetiva, nunca se isolara do ato concreto de algo representar algo existente, do mesmo modo que o representante de uma firma a representa numa cidade distante. Acreditou-se então que lógica poderia cuidar de si mesma, os lógicos imaginaram ser possível que os sistemas formais pudessem ser montados sem vínculos com o mundo. No anos 30 do século passado, contudo, veio a crise do formalismo, provocada em particular pelos trabalhos de Church e de Gödel, mas não foi por isso que a lógica formal voltou a ser como tinha sido anteriormente. Daí a importância de se compreender com precisão o alcance da revolução fregeana, em particular o ponto de inflexão marcado pela Conceitografia. Luiz Henrique estuda esse opúsculo em três longos capítulos. No primeiro, "Lógica e Verdade", expõe a complexa noção fregeana de pensamento. O projeto de uma refundação da lógica está ligado ao projeto de fundar a aritmética, esta entendida como a teoria dos números, a álgebra e a análise. Importa encontrar os fundamentos lógicos que asseguram a necessidade inexorável das demonstrações matemáticas, mas para cumprir essa tarefa se torna necessário reformular a linguagem comum a fim de que ela retire a aritmética de seu hibridismo. Já que esta combina a linguagem das formas com a linguagem comum, cabe encontrar nesta última procedimentos tão rigorosos como os que armam aquela. A primeira possui a acuidade do microscópio, mas lhe falta a maleabilidade da segunda. Uma lei da física é tanto descritiva como normativa, ela descreve, por exemplo, a órbita elíptica dos planetas, assim como prescreve que se reconheça como elíptica a órbita desses planetas. Do mesmo modo, uma lei matemática, por exemplo, a comutatividade da soma (a+b=b+c), descreve e prescreve um pensamento, no caso, um conteúdo tomado como verdadeiro para o qual não importa a ordem dos dois números somados. O mesmo deve valer então para uma lei lógica, suponhamos para a dupla negação (a = não não a). Ela é verdadeira, a verdade faz parte de seu ser, sua formulação representa algo que vale de per si. Frege desenvolve então uma curiosa e fascinante noção de pensamento, quase uma Forma platônica, desprovida contudo de sua capacidade de plasmar o real. Mas do mesmo modo que a lei física descreve fatos, a lógica passaria a descrever pensamentos. O segundo capítulo, "Lógica e Método", aprofunda essa autonomia do pensamento, cujo acesso, todavia, se faz mediante nossos atos subjetivos de representação. A lógica de Frege é um extraordinário assalto ao psicologismo, isto é, tese que reduz o pensamento lógico a estruturas psicológicas bem formadas. Mas para isso precisa reconhecer que o método, o caminho que nos leva a ele, consiste num friccionar de representações a fim de que elas depurem o sumo pensável e absoluto. Finalmente, no terceiro capítulo, "O Paradigma Aritmético", examina a construção dos conceitos elementares da Conceitografia a partir duma generalização dos conceitos aritméticos. Comentar todo esse caminho equivaleria a repensar o livro, a percorrer seus meandros, enfim, fazer filosofia, repensar o alheio para que o próprio ganhe clara consistência. Este não é, porém, o caminho do jornal, do diário; a reflexão filosófica tende a escapar do dia-a-dia. Mas às vezes os dois caminhos se cruzam, apenas todavia para anunciar que uma nova estrela da tarde vai se confirmar como a velha estrela da manhã. José Arthur Giannotti é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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