Do outro lado da parede

PUBLICIDADE

Por Verissimo
Atualização:

"Bé! Bé!" Era o som que ouviam do apartamento ao lado. Na maior parte do tempo não ouviam nada. Os vizinhos, um casal de meia-idade, eram silenciosos. Não faziam qualquer ruído. A não ser aquele, que atravessava a parede três ou quatro vezes por dia, todos os dias. - Bé! Bé! E às vezes, mais intrigante ainda: - Béééééé! Béééééé! O que seria aquilo? Os vizinhos não podiam estar criando cordeiros no apartamento. E era uma voz humana. Uma voz feminina. - Bé! Bé! Ou, com ainda mais volume, com raiva: - Bééééé! Bééééé! O que seria aquilo, meu Deus? Descartaram a hipótese de ser algum jogo erótico do casal. Ele: - Faz ovelhinha, faz. E a mulher: - Bé! Bé! - Mmmm. Faz de novo. - Bééééé! Béééééé! - Agora começa a tirar as meias... Não. O casal não tinha mais idade para isso. E o som não era carinhoso, não era dengoso, não tinha nada a ver com amor. Era estridente, impaciente... - Bé! Bé! Um dia, não se agüentaram e convidaram o casal do lado para uma visita. Nada formal, um cafezinho. Para se conhecerem melhor. Afinal, tinham se mudado para o prédio havia algumas semanas, logo depois do casamento, já era tempo, etc., etc. Não planejavam perguntar, de cara: "Vem cá, que história é essa do ?Bé! Bé!?"? Mas talvez, no decorrer da conversa, os vizinhos revelassem alguma coisa. Dessem uma pista. E o mistério do "Bé! Bé!" finalmente se esclarecesse. Na hora marcada, os vizinhos apareceram. Os dois casais já tinham se cruzado no corredor e no elevador mas ainda não tinham se apresentado. Os vizinhos pareciam ter a mesma idade. 65, 66, por aí. Ele mais bem conservado do que ela. Foi ele quem fez as apresentações: - Eu me chamo Onófrio e minha esposa se chama Elizabeth. Disse o nome dela com pronúncia inglesa. "Beth" com o som de "besta" e o "th" no fim, a língua entre os dentes. Ela revirou os olhos e corrigiu: - Elizabéti! - Elizabeth - repetiu ele, sem alterar a voz, sorrindo e enfatizando a pronúncia inglesa. - Béti, Onófrio. Béti! - Beth. - Bé! Bé! Durante a visita, só ele falou. Contou que estavam casados há 40 anos. Ela suspirou. Contou que não tinham tido filhos, mas que eram muito felizes. Ela olhou para o alto, como que suplicando a Deus que viesse buscá-la, ou pelo menos fulminasse o marido com um raio. No fim, ele anunciou o fim da visita, agradeceu a hospitalidade e o cafezinho, e disse: - Vamos indo, Elizabeth? - Bééééé! Bééééé! - Imagina como é a vida deles. - Um inferno. Há 40 anos. Ele chamando ela de um jeito e ela corrigindo. - Eu não agüentava. Eu já teria fugido de casa. Ou atirado uma frigideira na cabeça dele. - Mas ela, também... Francamente. Por que não aceita a pronúncia dele e deixa pra lá? - Mas ele só faz para implicar. - Pois então? Mais razão para não dar bola e... Escuta. A vizinha estava gritando, do outro lado da parede: - Bé! Bé! - Será que nós um dia vamos ser assim? - Não sei. - Promete que nós nunca vamos ser assim. - Olha... - Promete! E do outro lado da parede: - Bééééé! Béééééé!

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.