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Do exterior, vêm temas polêmicos

Entre os bons, 4 Meses..., de Cristian Mungiu, e Gomorra, de Matteo Garrone

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Como tem acontecido nos últimos anos, grande número de produções estrangeiras estrearam nas principais praças do País, em especial São Paulo e Rio. E, também como costuma acontecer, a maior parte delas pode ser definida com o rótulo de "produto descartável". Em meio a essa produção de linha de montagem, reciclável, chegam filmes de verdade - e, felizmente, em número e qualidade apreciáveis. O melhor exemplo deste ano é O Silêncio de Lorna, interpretação à flor da pele dos impasses da imigração na Europa, assinada pelos irmãos belgas Dardenne. Com sua estética costumeiramente seca, os Dardennes trazem a história da moça albanesa que se casa para obter cidadania belga e, ao mesmo tempo, procura desvencilhar-se do marido para poder renegociar o passaporte recém-obtido. É um trabalho extraordinário, um filme que vai ficar. Como provavelmente vai ficar o romeno 4 Meses, Três Semanas, Dois Dias, de Cristian Mungiu. Aqui o tema é outro e também outro é o tempo histórico. Trata-se de contar como era difícil para uma garota abortar no tempo do autoritarismo comunista. Mas, como todo grande filme, este também não se limita a seu tema. Com estética igualmente despojada, Mungiu estuda a maneira pela qual regimes opressivos fabricam seus pequenos tiranos. Um feto, mostrado em primeiro plano, foi uma das cenas mais discutidas deste filme - aqui e na Europa. Também vieram da Europa outros belos filmes vistos em 2008. A França volta a ter presença marcante nas telas brasileiras, o que é fato a ser saudado. Por exemplo, tivemos o magnífico A Questão Humana, em que Nicolas Klotz relaciona métodos contemporâneos de gerenciamento empresarial a certo ideário burocrático do nazismo. Tema muito atual, como se vê. Da França vieram também Armênia e Lady Jane, ambos de Robert Guédiguian, A Fronteira da Alvorada, de Philippe Garrel, O Escafandro e a Borboleta, de Julien Schnabel, O Segredo do Grão, de Abdel Kechiche, As Aventuras de Molière, de Laurent Tirard, Em Paris e A Bela Junie, os dois de Christophe Honoré, e, sim, mais um opus extraordinário de mestre Claude Chabrol. Para Chabrol devemos reservar uma palavra à parte. Dono de obra extensa e de invencível bom humor, Chabrol parece ter chegado à mais completa simplicidade em sua arte. Em Uma Garota Dividida em Dois, mais uma vez roçando no gênero policial (mas sempre para falar de outras coisas, da sociedade em seu todo), ele conta a história de uma moça literalmente dividida entre seus desejos e o casamento de conveniência com um ricaço. Outra presença européia interessante foi a da Itália, que parece querer se tornar novamente constante para o público brasileiro, como foi em outros tempos. Filmes como Meu Irmão É Filho Único, de Danielle Luchetti, e Caos Calmo, de Antonello Grimaldi, são bons exemplos do que se faz ultimamente na Itália. O primeiro é uma interessante reflexão sobre o movimento pendular entre fascismo e antifascismo, no caso representado por dois irmãos antagônicos. São tendências que até hoje dividem o país. Basta recordar que, no plano real, a Itália encerrou o curto governo de centro-esquerda de Romano Prodi para recair, pela terceira vez, nas mãos de Silvio Berlusconi. O segundo, com Nanni Moretti, como protagonista, é a história pessoal de um homem que se torna viúvo e vira pai superprotetor para a filha única. Intimismo, que vem dominando boa parte da produção italiana. Mas esse não é o tema do principal lançamento italiano no Brasil. Gomorra, de Matteo Garrone, que ganhou o Prêmio Especial do Júri em Cannes, se debruça sobre o poder da Camorra, a "máfia" napolitana. Muitos o chamam de Cidade de Deus italiano, por mostrar a atração fatal que o crime organizado exerce sobre a juventude. Mas a aproximação pára por aí, pois são filmes de estéticas bem diferentes, se não opostas. Gomorra dá seu recado com toda a secura possível, sem estetizar qualquer cena e sem aliviar nas passagens mais violentas. O autor do livro, Roberto Saviano, vive sob proteção policial, ameaçado de morte pelas revelações feitas dos bastidores da organização criminosa e sua teia de poder. Entre os latino-americanos, os destaques ficam para os mexicanos Zona do Crime, de Rodrigo Plá, e Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas. Tão diferentes entre si como podem ser o cinema social de Plá e o metafísico de Reygadas, este visitando uma comunidade menotista e nela encenando um caso de paixão terminal, em filme de perturbadora beleza. Da Argentina veio Leonera, de Pablo Trapero, belo ensaio sobre a prisão e o instinto materno. A cinematografia oriental foi representada pelo coreano Kim-Ki-Duk e seu filme Fôlego, inquietante história de uma mulher que visita um presidiário e muda a decoração da sala de entrevistas para alegrá-lo. O diretor é um especialista no inusitado e não decepciona neste filme intenso e inesperado. Dos Estados Unidos, fonte dos incontáveis blockbusters que congestionam o circuito, também vieram ótimos filmes. Primeiro, dois Coen de primeira linha - Onde Os Fracos Não Têm Vez e Queime Depois de Ler. Deve-se acrescentar a eles Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto, de Sidney Lumet, Sweeney Todd, de Tim Burton, Paranoid Park, de Gus van Sant, Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson, Senhores do Crime, de David Cronenberg, e Na Natureza Selvagem, de Sean Penn. Dos Coen, se pode dizer que, desde Fargo, vêm apurando seu estilo. Alternam este ano filme soturno que levou o Oscar adaptando o romance de Cormac McCarthy, com uma comédia rasgada, porém bastante crítica em relação ao nosso tempo. É curioso vê-los em entrevista, esquivando-se das perguntas ou dizendo abobrinhas. Raramente dão uma resposta aproveitável. Sua inteligência está toda nos filmes que fazem. Pensando bem, é melhor assim. Um outro destaque ficaria para Senhores do Crime, do canadense Cronenberg em produção norte-americana, impressionante estudo sobre a máfia russa em Londres com a figura ambivalente de Viggo Mortensen dominando a cena. Há uma seqüência de luta numa sauna que já entrou para a antologia das melhores brigas do cinema. Além deles, há Woody Allen, que apesar de trabalhar na Europa, continua sendo um diretor profundamente norte-americano. O Brasil teve o privilégio de ver dois Allen lançados no mesmo ano - O Sonho de Cassandra e Vicky Cristina Barcelona. Os dois tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão representativos do mesmo estilo. Um, uma espécie de Crime e Castigo à inglesa, filmado em Londres. O outro, apanhando o clima solar de Barcelona e embarcando na sensualidade de Javier Bardem, Penélope Cruz e da musa do diretor, Scarlet Johansson. O desfecho um tanto melancólico e reflexivo é o verdadeiro toque de Allen. Dizem que ele se repete. Ora, artistas ruminam as mesmas questões; basta conhecer a história da arte para sabê-lo. Woody Allen continua trabalhando suas obsessões (para nosso proveito), ao ritmo inalterável de um filme por ano. Que continue. E que esses filmes cheguem rapidamente. Talvez o inesperado sucesso de Vicky Cristina Barcelona possa significar um estímulo para os distribuidores.

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