Diva cabocla

De um bairro pobre de Belém aos palcos da Ópera de Berlim, a soprano paraense[br]Adriane Queiroz fala sobre sua trajetória e do desejo de cantar mais no Brasil

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Por João Luiz Sampaio
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"?Bora ver!" Adriane Queiroz abre um enorme sorriso. "Não gosto de morrer na beira, se é para fazer, então é para ir até o fim", continua ela na tarde da última terça-feira, enquanto conversa com o Estado em Santa Teresa. Dali a algumas horas, a soprano paraense faria sua estreia carioca em recital no Auditório Finep, ao lado do barítono Manuel Álvarez, primeira parada do que espera seja uma temporada de mais atuações no Brasil. A passagem pelo Rio só teve uma chateação: a falta do sol. "Menino, você mora em Berlim, passa um inverno horrível e não vê a hora de chegar no Rio e ir à praia. E, quando chega aqui, só tem chuva e tempo feio. O pior é que meu marido me ligou ontem para dizer que abriu um sol danado lá na Alemanha. Pode?" Adriane é soprano do elenco estável da Ópera Estatal de Berlim, onde foi "adotada" pelo diretor artístico Daniel Barenboim. Sua carreira está em ascensão e fica difícil evitar a alusão a uma cinderela do mundo lírico. Dá uma olhada. Ela nasceu em Belém, mais precisamente na Terra Firme, o bairro mais populoso e pobre da capital paraense. Iniciou seus estudos de canto com Marina Monarcha e Malina Minerva. Mas formou-se pedagoga e trabalhou na criação de uma nova metodologia que usa a música como ferramenta na alfabetização de crianças de rua. Casou-se, teve um filho. Tudo ia bem. "Mas meu sonho era viver de canto. E se aprendi uma coisa na vida é que preciso ser fiel a mim mesma. O que eu busco é a felicidade. Eu era feliz na baixada, trabalhando com as crianças. Mas queria ser feliz no palco. E pensei: depois de velha, eu posso ser pedagoga, agora, cantora, tinha que ser já. Além disso, com o canto tem um problema: cantar não é profissão, é doença." Isso foi há 12 anos. Com apoio do governo, "que me deu uma bolsa pequena mas que ajudava bastante", arrumou as malas e partiu para Viena, onde pretendia completar seus estudos. O sorriso dá lugar a um semblante mais sério. "Abandonei meu emprego, deixei meu marido e meu filho de oito anos aqui. Foi difícil demais, menino, mas algo me dizia que era necessário, apesar da reação das pessoas. A sociedade não aceita muito bem essas coisas, mas, graças a Deus, meu marido aceitou." O riso solto retorna. "Cheguei lá sem falar uma palavra de alemão. Eu acho que sou meio maluca mesmo." Maluca ou não, ela foi aceita na universidade e terminar o curso passou a ser sua prioridade. Não foi fácil. "Tinha horas que não dava para controlar as crises de choro, dava um desespero danado. Mas eu parava, pedia a Deus que me guiasse e seguia adiante." Começou a fazer audições, viajou a Berlim e lá ouviu de um maestro: "Você é gorda demais para os palcos alemães." Gorda ou não, voltou a Viena. E conseguiu trabalho na Volksoper. Até que um dia, cinco anos após chegar na Europa, resolveu tentar uma audição na outra casa de ópera da capital austríaca, a Staatsoper. "Uma das diretoras assistentes do Ian Holländer, que era o mandachuva do teatro, estava se mudando para Berlim, onde ia ser diretora da Ópera Estatal. Gostou de mim e me convidou." "Em Viena, eu tinha um bom emprego na Volksoper e não sabia como seria na Alemanha. Mas não gosto de me sentir acomodada. Então, fui." Começou cantando papéis pequenos, como a Barbarina das Bodas de Fígaro, de Mozart. Hoje, seus papéis incluem Susanna, protagonista da mesma ópera, Despina, em Così Fan Tutte, e Pamina, na Flauta Mágica, ambas de Mozart; Micaela, na Carmen, de Bizet, e Liù, em Turandot, de Puccini; no prestigiado Festival de Salzburgo, participou da gravação da ópera Tiefland, de Eugen D?Albert, regida por Bertrand de Billy. E foi escolhida pelo gigante da regência Pierre Boulez para a gravação da Sinfonia nº 8 de Mahler (selo Deutsche Grammophon), lançada no ano passado, peça que eles repetem este mês na Áustria, com a Filarmônica de Viena. "Menino, você acha que é pouca besteira? Pierre Boulez!!! Eu fiquei com um medo danado quando me chamaram. Eu estava acostumada com a energia do Barenboim, esse homem parece que tem um motor dentro dele. Já Boulez é uma paz, não tem energia extra, sabe? Não é de falar muito, mas conhece a música como poucos." Em Berlim, Adriane diz ter encontrado um esquema de trabalho com o qual aprendeu muito. "A responsabilidade é enorme, não importa se você é protagonista ou se canta um papel pequeno. A cobrança é a mesma. Entendi isso a duras penas (risos). Você está sendo avaliado a todo instante." Para o futuro, ela fala de dois papéis que gostaria de cantar. "Eu sei que vou ser Tosca e Butterfly, mas lá no final da carreira." Até lá, segue com o repertório de soprano lírico, ao qual acrescenta o timbre escuro que é a grande marca da sua voz, colorindo de maneira especial os graves e oferecendo belo contraste às notas mais agudas. "Não sei até quando meu tipo de voz será valorizado pelo business da ópera. Soprano é doença, tem em todo lugar, de todos os tipos, com vozes lindas e silhuetas hollywoodianas. Mas a experiência, isso não tem plástica que dê jeito." Adriane vive hoje em Berlim com o marido, que trabalha como clown, e o filho. Gosta da rotina da cidade. "Berlim tem aquela paz de vilarejo, mas com todas as vantagens de uma grande metrópole. E como sou uma cabocla de Belém, dou muito valor ao verde da cidade. E, claro, com essa pele, eles me acham linda demais, é por isso que gosto tanto (risos)", brinca. Chega a cantar entre 40 e 50 récitas por ano na Staatsoper. Mas está contente com o fato de que, depois de alguns anos, sua agenda está mais flexível. E quer cantar mais no Brasil. Há dois anos, fez uma Ceci inesquecível no Guarani, de Carlos Gomes, encenado no Teatro da Paz, em Belém. E aproveitou a passagem recente pelo Brasil para audicionar a maestros. "Não é porque estou cantando em Berlim que não vou me submeter a audições. Os maestros têm que me ouvir antes de me contratar, precisam gostar da voz. Não tenho essas frescuras não. Canto onde for, teatro grande, sala pequena. Se o Barenboim, que é o Barenboim, faz recitais em escolas, por que euzinha vou ficar escolhendo teatro?" No mais, nada de grandes planos para o futuro. "Não cheguei até aqui fazendo planos. Quero cantar cada vez mais, aproveitar o quanto posso minha voz." ?Bora ver.

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