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Disputa por quadro de Picasso causa crise na Alemanha

O Estado da Bavária não quer devolver o quadro Madame Soler alegando que não foi uma apropriação nazista

Por Catherine Hickley
Atualização:

Quase duas décadas atrás, a Alemanha estabeleceu uma comissão nacional para tratar de disputas sobre arte saqueada ou vendida na era nazista. Embora as opiniões da comissão consultiva não sejam vinculativas, suas recomendações têm sido seguidas rotineiramente e cerca de 20 obras de arte foram devolvidas aos herdeiros de pessoas que sofreram por causa do Terceiro Reich.  Mas agora as Coleções de Pintura do Estado da Baviera, de propriedade do Estado da Baviera, se recusam a encaminhar o caso de um Picasso à comissão, rompendo com a tradição que atraiu o escrutínio do governo federal e uma advertência do presidente do própria comissão consultiva.  “É simplesmente inexplicável que o estado se recuse a usar um mecanismo de mediação que ele próprio estabeleceu”, disse Hans-Jürgen Papier, presidente da comissão e ex-presidente do tribunal constitucional alemão. 

O quadro Retrato de Madame Soler (1903), de Pablo Picasso. Foto: Pinakothek der Modern/Munique

Os críticos da decisão dizem que, qualquer que seja o mérito de uma reivindicação particular, os 16 estados alemães devem respeitar a autoridade do painel que estabeleceram com o governo federal em 2003, depois que a Alemanha endossou os Princípios de Washington, um acordo internacional de 1998 que clamava por "respostas justas" às reclamações que surgem de conduta na era nazista.  “Independentemente do caso individual, concordar com a comissão deve ser algo natural”, disse Ulf Bischof, o advogado dos herdeiros de Paul von Mendelssohn-Bartholdy, um banqueiro judeu que já foi dono de um quadro de Picasso, em Berlim. “O contexto histórico e as exigências de justiça e respeito exigem muito disso.” Funcionários das coleções da Baviera fizeram a restituição por 20 obras de arte no total - a mais recente em 31 de maio -, muitas vezes agindo com base em sua própria pesquisa de proveniência, sem a necessidade de intervenção da comissão.  Em três casos, houve desacordo e eles concordaram em envolver a comissão consultiva. Mas, neste caso, eles disseram que a pintura, “Retrato de Madame Soler”, datada de 1903, não foi vendida como resultado da perseguição nazista, uma posição que os herdeiros contestam.  A pintura retrata a esposa de um alfaiate que fez amizade com Picasso em Barcelona, na Espanha, e apoiou o artista em tempos difíceis com encomendas em troca de roupas e dinheiro. É uma das cinco obras de Picasso que a família Mendelssohn-Bartholdy vendeu ao negociante de arte de Berlim Justin K. Thannhauser, em 1934 e 1935.  As Coleções de Pintura do Estado da Baviera compraram a pintura de Thannhauser em 1964. Essa instituição e o governo da Baviera afirmam que, em sua opinião, a família não vendeu “Retrato de Madame Soler” como resultado da perseguição nazista e que o caso está encerrado.  Os herdeiros argumentam que Mendelssohn-Bartholdy vendeu a obra sob coação. Afirmam ainda que o atual titular de uma obra contestada não deve ser o único juiz da reclamação e desejam que o assunto seja examinado pela comissão consultiva, criada expressamente para mediar tais controvérsias. Embora a comissão seja vista como o tribunal nacional para tais questões, ela só pode ser chamada para mediar se ambas as partes concordarem. A ministra da Cultura alemã, Monika Grütters, disse que espera que todos os museus alemães encaminhem casos ao painel se os herdeiros solicitarem, de acordo com uma carta de dezembro de 2016 que ela enviou aos herdeiros de Mendelssohn-Bartholdy. Seu ministério reiterou essa posição em um e-mail recentemente. Mas o ministério observou que, sob a estrutura federal da Alemanha, a decisão cabe aos estados. A Baviera já havia se recusado a encaminhar um caso à comissão, envolvendo seis obras de Max Beckmann que foram reivindicadas pelos herdeiros do marchand Alfred Flechtheim. Essa disputa, no entanto, surgiu em 2013, antes que a ministra da Cultura deixasse clara sua expectativa de que todos os museus financiados pelo Estado apresentassem casos à comissão.  “Não compreendo absolutamente o fato de que algumas instituições com financiamento público se recusam a encaminhar casos à comissão consultiva”, disse Grütters, em uma conferência de 2018 para marcar o 20º aniversário dos Princípios de Washington.  Papier, o presidente da comissão, rejeitou a visão da Baviera de que a reclamação é injustificada como "irrelevante", dizendo que cabe à comissão avaliar tais casos, não ao titular de uma obra de arte em disputa. A resistência da Baviera em encaminhar o caso ao painel "deve deixar a impressão de que não há vontade ou meios apropriados para lidar com injustiças históricas na Alemanha", disse ele, por e-mail.

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