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Diálogo de macacos

Por Daniel Piza
Atualização:

O risco de escrever ouvindo música é não ouvir a música das palavras. Tércio passeava com o filho pequeno pelo zoológico, na quinta passada. Com o calor forte e a umidade baixa, decidiu se sentar e descansar. Os bichos também estavam parados, sonados; pareciam dopados, naquela letargia apenas interrompida de vez em quando por uma agitação ou grito, seguindo-se novo e longo período de inércia. De repente ele ouviu vozes estranhas, e ergueu a cabeça para procurar de onde vinham. Eram dois macacos numa jaula ali perto, cuja placa identificava suas espécies: um chimpanzé e um bonobo. Sem ser percebido, se aproximou e prestou atenção à conversa. Chimpanzé - Esses humanos, como dizem, são uma piada mesmo. De mau gosto. Bonobo - Do que você está falando? Chimpanzé - Você não viu, ontem, a sessão secreta do Senado? Eles absolveram o presidente do Senado, acusado de um monte de contravenções, como a de pagar pensão da mãe de seu filho com ajuda de empreiteira, e que até agora não conseguiu provar de onde vinha o dinheiro. Bonobo - Ah, eu vi, sim. Mas talvez seja porque a Justiça já está investigando. Chimpanzé - Ô, bonobo, deixa de ser ingênuo. Com tantas suspeitas e mentiras, o cara no mínimo tem de ser afastado. Você vai dizer que ele é inocente até prova em contrário, como os aliados políticos dele? Mas até a prova em contrário ele não pode exercer um cargo como esse. E essa ''''sessão secreta''''... até soa como reunião de uma sociedade misteriosa... Bonobo - É, eu sei. Mas é que você fala como se fosse o fim do mundo, ou o fim do Brasil. Não é a primeira vez que isso acontece na política nacional. Chimpanzé - Nem por isso fico menos indignado. Bonobo - Uma coisa é ficar indignado, outra é achar que isso significa que o Brasil é uma porcaria, que tudo piorou. Não sou eu que sou ingênuo, chimpanzé. Você que é muito agressivo, pessimista. Fica parecido com esses caras que acham que a Europa é o máximo, os EUA são o máximo, que o brasileiro é incompetente por natureza, ''''isso aqui não tem jeito'''', etc. Daqui a pouco vai passar gel no cabelo e ir esquiar ali com os pingüins? Chimpanzé - Lamento, mas o Brasil é irrelevante. Você acha mesmo que falta pouco para sermos um país justo e desenvolvido, que estamos ''''quase lá''''? Bonobo - Acho. Chimpanzé - Macacos me mordam! Opa, desculpe pela expressão... Bonobo - (risos) Um lapso bem significativo... Você parece aquele macaco do Kafka, que foi criado como homem e sonha ser um músico e dar concertos, de tão doido para sair da jaula. Viver aqui tem suas vantagens. Chimpanzé - E muitas desvantagens também. Dê uma volta por aí, vá ver a selva em que vivemos. As cidades têm cada vez mais crimes; metade da população não ganha um salário mínimo, não tem emprego formal e não tem casa com esgoto; as escolas e os hospitais são quase todos ruins; há lugares onde se vive na Idade Média, sem segurança, sem justiça, sem perspectiva. E a classe política... bem, você sabe. A impunidade só faz aumentar. Bonobo - Não é bem assim. Viu o crescimento do PIB, divulgado ontem também? Vamos ficar perto de 5% neste ano, companheiro. A pobreza vem caindo, o emprego melhorando. E pelo menos agora sabemos dos crimes, porque a Polícia Federal trabalha bastante. Até parece que não havia corrupção antes no Brasil. O que nunca houve antes no Brasil foi essa chance de dar um salto. Chimpanzé - Salto para onde? Para o abismo? Isso que dá ficar em cativeiro como você; a inteligência vai amolecendo... O Brasil ainda cresce pouco, em comparação com o mundo, e o investimento é baixo, só 17% do PIB. Gastos públicos e impostos só fazem subir. Ainda tem no horizonte a desaceleração nos EUA, a inflação nos alimentos e a falta de infra-estrutura. Daqui a dois ou três anos vamos ver se o Brasil conseguiu manter a média de 5%... Bonobo - Ficar preso faz mal a você, faz você ficar todo irritado, incapaz de raciocinar com calma. Como está cheio de macaquinhos no sótão... epa, não era isso que eu queria dizer (risos). Enfim, o Brasil não vai resolver os problemas da noite para o dia, mas é óbvio que tem melhorado muito. Chimpanzé - Óbvio? Só para quem acha que todo mundo é bonzinho, que basta uma ajuda de custo e uma ONG para que a tristeza e a violência acabem. Se eu pareço o macaco do Kafka, você parece o burro do Machado, aquele que achava que ia ser livre com a invenção do bonde elétrico. Livre, mas sem emprego... Bonobo - Seu problema é não ter esperança. Eu sou otimista, sim, porque assim pelo menos tenho sempre uma reserva de energia. Prefiro isso a ser como você, um cara amargurado, sem a menor boa vontade, pensando sempre no pior. Chimpanzé - O pessimista pelo menos não é enganado. Num país como este, desconfiança pouca é bobagem. Bonobo - Você fala como se fosse uma fatalidade, ''''um país como este''''; como se estivesse escrito no DNA dos brasileiros que são um fracasso. Este país tem muitas qualidades: uma natureza linda, um povo alegre, a décima economia do mundo. Mundo que adora nosso futebol, nossa música, nosso modo de viver. Até nossas fêmeas... Chimpanzé - Uma natureza linda que vivemos destruindo. Um povo alegre que prefere não encarar a realidade. A décima economia e uma das piores distribuições de renda do planeta. E desde quando ser bom de bola, bunda e batucada é a mesma coisa que ter o respeito e a admiração do mundo? Até parece que uma civilização se faz apenas com bons instintos... Bonobo - Mas é melhor tê-los do que... Nesse momento, Tércio não se conteve e interrompeu o diálogo. Os macacos se assustaram com a surpresa, mas em seguida sorriram para ele, de acordo com o protocolo ensinado pelo Departamento de Relações Públicas do zoológico. Tércio - Desculpe, mas posso dizer uma coisa? Vocês não acham que essa discussão vai terminar da mesma forma como começou, cada um dizendo o oposto do outro? Chimpanzé e bonobo - É verdade. (Cada um aponta para o outro) Mas é que ele não sabe falar de outra coisa! Tércio - (risos) Estão vendo? No fundo são mais semelhantes do que diferentes. Chimpanzé e bonobo - (juntos de novo) De jeito nenhum! Tércio - Agora deram até para falar em uníssono... (Irônico) Achei que isso só acontecesse quando pedissem bananas. Bonobo - É, pode ser. Chimpanzé - Pode ser... (olhando firme para Tércio) Pode ser também que a gente tenha aprendido com vocês, né, Homo sapiens? Bonobo - (acrescentando) Afinal, desde quando são tão razoáveis quanto dizem? Tércio fica sem ação. Na mão, segura um picolé, com o papel dobrado para baixo, encobrindo o palito. Como uma banana descascada até a metade. Chimpanzé - Bananas, bananas. Nisso você está certo. Não conseguimos pensar em nada além de bananas. RODAPÉ Howie não é o protagonista de Homem Comum, de Philip Roth, mas seu irmão. O protagonista não recebe nome, como se fosse o próprio ''''Everyman'''' do título original, tirado de peça anônima inglesa do século 15. Algumas frases que citei também foram extraídas da edição americana, logo não coincidem com as da tradução de Paulo Henriques Britto. Embora quase sempre muito apropriada, ela deixa escapar o tom irônico e enxuto de Roth aqui e ali. Exemplo: ''''Eluding death seemed to have become the central business of his life and bodily decay his entire story'''' foi traduzido para ''''fugir da morte se tornara a ocupação principal de sua vida, e toda a sua história se resumia ao processo de decadência do corpo'''' em vez de ''''iludir a morte parecia ter se tornado o negócio central de sua vida, e a decadência física sua história inteira''''. POR QUE NÃO ME UFANO O leitor pode achar estranho, mas o livro O Mesmo e o Não-Mesmo, do químico Roald Hoffmann (Editora Unesp), tem muito a ver com o tema de abertura. São ensaios que buscam aproximar a química de outras disciplinas e da filosofia, com citações culturais recorrentes - nomes como Canetti, Goya e Popper. Prêmio Nobel, Hoffmann diz que a síntese caracteriza a química, por transformar moléculas dentro de laboratório e assim fazer uma ponte entre o natural e o artificial. As dualidades estão aí, em tensão constante; essa contradição cria o movimento, a dinâmica. Mas não se trata da dialética no sentido de Hegel, como síntese final, totalizante; e sim de entender que as oposições ora desaparecem ora ressurgem, que podem ocorrer ao mesmo tempo sem derivar em solução plena. É dessa perspectiva multidimensional, complexa, que ele vê a química e a existência. Antes o Brasil fosse visto da mesma forma.

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