Diálogo com Genet na corda bamba
Dirigido por Joaquim Goulart, João Paulo Lorenzon interpretará monólogo baseado no poema do francês para um acrobata
Entrevista com
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25 de agosto de 2009 | 00h00
Adaptação teatral de um poema sobre a solidão moral do artista, escrito em 1957 pelo francês Jean Genet, um dos mais revolucionários dramaturgos do século 20, O Funâmbulo chega aos palcos brasileiros pela primeira vez no dia 11 de setembro, no Sesc Paulista. O monólogo, traduzido por Fátima Saadi, exigiu do ator João Paulo Lorenzon muito mais que equilíbrio na hora de andar sobre o arame, como fazia o garoto marroquino Abdallah Bentaga, a quem Genet dedicou o poema. O ator teve de viajar a Paris e reunir os três detentores dos direitos de O Funâmbulo - que não moram na França. Dançou na corda bamba para conseguir a autorização da montagem, dirigida por Joaquim Goulart, do Núcleo Caixa Preta, companhia por ele fundada."Nunca vi tanta exigência para liberar direitos de uma peça", conta o ator, que, aos 30 anos, já enfrentou outro monólogo difícil, Memória do Mundo, inspirado no universo literário do escritor argentino Jorge Luis Borges. "Tive de provar que sabia andar sobre o arame, fazer teste vocal, enviar croquis do cenário (de Daniela Thomas) e um dossiê das peças que fiz", conta Lorenzon. Todo o esforço será colocado à prova na curta temporada da peça (até 1º novembro), quando Lorenzon vai ensaiar curvetas, dar saltos mortais e transmitir para o público a bela lição que Genet deu a seu amante Abdallah, um garoto de 18 anos que ele conheceu em 1955, quando acabara de concluir sua peça Os Negros. O garoto marroquino foi seu grande amor, segundo o biógrafo do escritor, Edmund White. Na velhice, Genet falaria de Abdallah e de Jean Decarnin como as duas figuras mais importantes de sua vida, garante White.Genet, de fato, assumiu Abdallah e sua família pobre. Filho de um acrobata argelino com uma alemã semiparalítica, ele pertenceu a uma companhia itinerante de circo, arriscando a vida em troca de comida e abrigo. Quando o dramaturgo o conheceu, Abdallah morava numa barraca com um amigo muçulmano, Ahmed. Ele passou a sustentar o garoto semialfabetizado e sua mãe, vendendo os direitos de um roteiro cinematográfico, Le Rêves Interdits, para pagar suas aulas de equilibrismo. Espelho um do outro, segundo o diretor francês Pierre Constant, que dirigiu a peça em 1988, "eles se recriam numa fascinação recíproca". Um completa o outro, conclui Constant, reforçando a observação de White sobre a equivalência do risco enfrentado pelo funâmbulo no cabo de aço e o perigo assumido pelo artista ao desafiar os códigos morais da sociedade em que vive.A peça, assim, é ao mesmo tempo um poema de amor e uma reflexão sobre a dramaturgia circense e teatral. O diretor Joaquim Goulart, ex-ator da companhia de Gerald Thomas e do Centro Grotowsky, que trabalhou sob a direção do russo Hryroij Hiadji, parece habituado a desafios. No ano passado ele encarou mais um: a montagem de Bartleby, adaptação do texto de Melville. Dessa figura arquetípica e sempre nas sombras, que prefere não participar da encenação social, ao funâmbulo de Genet - "encarnação luminosa do erotismo" -, a evolução é evidente.Em todo caso, em ambos persiste certa obsessão tanatológica, como se a morte fosse paradoxalmente um ato de criação. "Não há antecedentes na dramaturgia de uma história como a de Genet e Abdallah, que se matou aos 28 anos", diz Goulart, comentando a sequência em que o dramaturgo alerta o acrobata sobre a morte que o espera: "Se você cair, merecerá a oração fúnebre mais convencional: poça de sangue e ouro....Você não deve esperar outra coisa."Entre Bartleby e o funâmbulo, outra coisa em comum entre ambos, conclui o diretor Joaquim Goulart, é que eles dançam para si mesmos, não para os outros. O último tem ao menos seu momento de transcendência na corda bamba, ao contrário do escriturário de Melville, que vive uma vida minúscula, incomodando a sociedade por sua insistência em não participar dela. "Acho uma filosofia bonita essa, a de ensinar ao equilibrista que ele não tem de se quebrar para flutuar", completa o ator João Paulo Lorenzon, que largou a profissão de advogado para fazer teatro, aprendendo inclusive a andar no arame com acrobatas de circo. "Temos de aprender a voar, não a cair", diz, não desprezando a carga alegórica de sua frase.O hábito de falar por metáforas se deve ao conteúdo poético de O Funâmbulo, que só faz uma única referência indireta a Abdallah no começo, quando Genet abre a carteira e descobre casualmente um desenho que o garoto fez de uma linha reta, representando a corda bamba onde desempenharia seu número. "Não se é um grande artista sem que um grande infortúnio esteja envolvido", sentencia Genet, adivinhando o futuro trágico do protegido.A obra do dramaturgo não é exatamente um mistério para Goulart. Há alguns anos ele conseguiu do próprio Genet a concessão dos direitos de Alta Vigilância, sobre um covarde que mata o companheiro de cela para impressionar seu ídolo. Experiência em contracultura ele tem: montou duas peças de Plínio Marcos.
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