PUBLICIDADE

Dia a Dia

1.º de maio de 1892 - Euclides no Estadão - No centenário da morte de Euclides da Cunha, esta seção trará até agosto artigos publicados por ele neste jornal, comentados pela maior especialista em sua obra

Por Walnice Nogueira Galvão e PROFESSORA DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA DA USP
Atualização:

Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa... Leia outros textos da seção Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática. Abandonam o cérebro dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos - e aqueles exércitos formidáveis, que a todo o instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira... Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo que trabalha e que sofre - sempre obscuro - entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro. O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a idade média, à sombra dos castelos sob o guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele - a matéria prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos - transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história - pensa! Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII, uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas - para trazer às costas, até os nossos dias - a burguesia triunfante. Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito, intentam-lhe a regeneração - desde os exageros de Proudhon às utopias de Luis Blanc - ele inicia por si o próprio levantamento. E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo - cruzar os braços. E que triste e desoladora perspectiva esta - de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho - e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras - num tenebroso bocejo... Sem entrarmos na analise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma ideia vencedora. O quarto estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal. Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias. Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável - quer se defina por um caso notável de histeria - Luiza Michel, ou por um caso vulgar de estupidez - Ravachol. Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema - e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers o espírito robusto - é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem. Realmente, a vitória do socialismo bem entendido, exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria - moça e rica - chegamos às vezes a não o compreender - transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática e além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina. Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer. Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana. Pela segunda vez se patenteia na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum - e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas ou se esta admirável cruzada para o futuro. Seja qual for este regime porvir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador. Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despejar nas revoltas desmoralizadas da anarquia. Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido - o exército - abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana. (Euclides da Cunha) Nota da Redação: A grafia deste texto foi atualizada segundo regras do Novo Acordo Ortográfico. Preservou-se a pontuação e as construções sintáticas originais do autor, a fim de não alterar seu estilo

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.