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Dez filmes para entender o mestre

Em 1952, com Mônica e o Desejo, ele já se mostra senhor de dramaturgia sólida, amparada no teatro

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Não deixa de ser um desafio fazer uma seleção de dez filmes em obra tão extensa e cheia de picos de qualidade como a de Ingmar Bergman. Se algumas escolhas devem convergir entre os apreciadores do cineasta, outras ficam por conta da subjetividade de quem prepara uma lista. Bergman ainda vai dar muito o que falar (e escrever) aos críticos, especialistas e cinéfilos. Há muito sabemos da dimensão de sua obra e da sua importância como um dos grandes mestres do cinema, em toda a sua história. Porém, sempre é preciso que uma carreira tenha realmente fim com o ponto final assinalado pelo desaparecimento físico para que os balanços ganhem concretude. Mesmo porque Bergman era pródigo em reaparecimentos. Em 1982 anunciou a despedida do cinema com Fanny e Alexander. Mas continuou a escrever roteiros que foram filmados. E, em 2003, ele próprio dirigiu Saraband, que passa a ser seu testamento. O momento é de rever Bergman. Reavaliar e revalorizar Bergman, um antídoto em momento tão medíocre do cinema. MÔNICA E O DESEJO (1952) Uma síntese entre a sensualidade lírica e a fotografia maravilhosa de Gunnar Fischer. Com o filme, tido como obra simples na filmografia do sueco, começa o seu trabalho com a atriz Harriet Andersson. É um divisor de águas, marcando o início do Bergman tal como o conhecemos, denso, senhor de uma dramaturgia sólida, amparada na experiência do teatro, de Strindberg, sobretudo, mas consciente da linguagem do cinema. Aqui é a história do jovem Harry (Lars Ekborg) que cai de amores pela superficial e sensualíssima Mônica (Harriet). O SÉTIMO SELO (1956) Bergman ambienta uma história no século 14 para obviamente falar do temor nuclear do após-guerra. O mundo visto pelo cavaleiro interpretado por Max von Sydow é uma terra devastada pela peste, pela intolerância religiosa. Um mundo obscuro, no qual a luz vem apenas de uma humilde família de saltimbancos, como a dizer que a redenção (se alguma é possível) só virá através da arte. Mas a morte é o limite implacável e ela joga seu xadrez com o cavaleiro, que luta numa partida perdida de antemão. Política e metafísica, aqui, comparecem e interagem. MORANGOS SILVESTRES (1957) É o que se poderia chamar de um road movie existencial, com o frio dr. Isak Borg (Victor Sjõstrõm) percorrendo o país, em companhia da cunhada (Ingrid Thulin) para receber uma honraria por sua carreira médica. Está velho e é um poço de amargura, mas a viagem é também um reencontro com seu passado e consigo mesmo. Bergman mescla os planos da realidade, da fantasia e do sonho para explorar essa reconstrução da vida do velho médico. O SILÊNCIO (1962) O filme faz parte de uma trilogia, também integrada por Luz de Inverno e Através do Espelho. Ingrid Thulin interpreta Ester, uma tradutora que viaja de volta à Suécia em companhia da irmã (Gunnel Lindblom). As rivalidades sexuais entre irmãs, a presença da morte (Ester sofre de uma doença terminal), a busca da redenção, o questionamento da fé, colocam este filme em nível de densidade ímpar. PERSONA (1966) Naquele que é, talvez, seu filme mais ''''psicanalítico'''', Bergman encena essa relação entre duas mulheres (Bibi Andersson e Liv Ullmann) que se identificam a ponto de se confundirem uma com a outra. Alma (Bibi) é a enfermeira que cuida de uma atriz, Elisabet Vogler (Liv), que perdeu a voz em razão de algum tipo de trauma. O trabalho de câmera e fotografia de Sven Nykvist é talvez o mais radical entre todos os que fez com Bergman. A relação fusional das duas mulheres se expressa na imagem. GRITOS E SUSSURROS (1973) Na origem deste que talvez seja seu filme mais profundo, está um sonho. Bergman diz que sonhou com uma imagem enigmática - quatro mulheres vestidas de branco estão num aposento com papel de parede vermelho. Ele quis decifrar a imagem e não pôde. Quis esquecê-la e não conseguiu. Resolveu filmar para livrar-se dela. E então a compreendeu: eram três mulheres esperando a morte de uma quarta. O branco da morte e da inocência. O vermelho uterino, porque vida e morte se interligam. Nunca o cinema tocou de tão perto o enigma da finitude. CENAS DE UM CASAMENTO (1974) A longa história do relacionamento entre Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann), tido primeiro como casal perfeito, até que as fissuras se apresentam e vem o rompimento. Produzido para a TV sueca, é um dos mais intensos trabalhos jamais feitos pelo cinema sobre o casal moderno. Pode-se dizer que é uma das suas obras mais influentes, com repercussões nos trabalhos de cineastas como Woody Allen e Domingos Oliveira, por exemplo. SONATA DE OUTONO (1978) Aqui a questão é o relacionamento entre mãe (Ingrid Bergman) e filha (Liv Ullmann). Ingrid é a pianista de sucesso que nunca teve tempo para a família. O filme é um longo e intenso acerto de contas entre duas gerações. A cena a reter é aquela em que Ingrid interpreta uma peça ao piano, para frustração de Liv, cujo rosto expressa a consciência de que nunca poderá chegar àquela altura. A expressão da beleza musical é, naquele momento, testemunha também de sua humilhação diante da mãe, uma ambigüidade que fazia parte do universo de Ingmar Bergman. FANNY E ALEXANDER (1982) Filme de vocação autobiográfica, anunciado, à época, como a despedida do cinema (não seria assim). Os personagens são órfãos de pai e a mãe torna a se casar, desta vez com um religioso rígido. Estão aqui colocadas as questões da família, do amadurecimento e da transgressão que significa o crescimento em ambiente hostil. É um filme de profunda beleza pictórica e expressa um sentido de humor nem sempre presente em outras obras do diretor. Anuncia, também, o seu retorno ao teatro. Quando tudo falha no final, é no palco que aquela família de artistas encontra abrigo. Como se vê, Bergman pode ter vacilado em todas as certezas ao longo da vida. Mas nunca perdeu a fé no caráter redentor da arte. Mesmo que essa redenção seja sempre parcial. SARABAND (2003) Seqüência, 30 anos depois de Cenas de um Casamento, cuja versão integral tem cinco horas de duração. Johan e Marianne continuam divorciados e ele se tornou um milionário, com uma relação de desprezo em relação ao filho. O sopro de vida, nessa relação fechada é a neta, Karin (Julia Dufvenius), violoncelista como o pai. A questão aqui será quebrar o vínculo edipiano entre pai e filha para que esta possa se libertar e viver sua própria vida. E sua própria arte. Neste, que é seu testamento, Bergman mais uma vez examina a dificuldade dos relacionamentos humanos e o impasse fundamental - não se vive sem os outros e nem com os outros. O ser humano é impasse. E, mais uma vez, a arte é o que pode ligá-los de alguma forma, e por alguns momentos, ao sublime. No fundo, é o que o justifica. Um detalhe importante sobre este, que é o último filme de Ingmar Bergman - ele não foi lançado no circuito cinematográfico e saiu diretamente em DVD (aliás, com o maravilhoso extra de uma entrevista com o diretor). Distribuidores e exibidores devem ter entendido que não haveria público para ele. Veja galeria de fotos da obra de Bergman e trechos de filmes no Portal do Estadão.

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