Deus e mercado na terra de Israel

A. B. Yehoshua faz retrato nauseante da ruptura contemporânea de crenças e princípios éticos

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Por Luis S. Krausz
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Num simpósio realizado nos EUA em maio de 2006, por ocasião da comemoração do centenário do Comitê Judaico Norte-Americano, o escritor israelense A. B. Yehoshua afirmou que "o futuro dos judeus está em Israel - e não no judaísmo". A arrogância com que desprezou os quase dois mil anos de Diáspora judaica, desde a destruição do Segundo Templo pelas tropas de Tito, no ano 70, até 1948, ano da criação do moderno Estado de Israel, e, implicitamente, o vasto e multifacetado legado cultural diaspórico, inflamou ânimos. Desencadeou, também, uma polêmica na imprensa, em Israel, nos EUA e na Europa, que se estendeu por meses a fio, e que o levou a retratar-se parcialmente, mas também a afirmar que "só em Israel os valores judaicos são parte integrante da vida cotidiana, não ficando restritos à esfera do ritual e da vida religiosa", ou seja, "apenas em Israel um judeu é inteiramente judeu, enquanto na Diáspora o judaísmo é à la carte". Pois é sobre esses valores judaicos - e sobretudo sobre o desapego a esses valores - que Yehoshua se debruça em seu romance A Mulher de Jerusalém, publicado originalmente em 2003 e agora primorosamente traduzido para o português por Nancy Rozenchan. Ambientado na Jerusalém de nossos dias, o romance retrata o triunfo dos parâmetros moralmente "neutros" da sociedade pós-humana global de nossos dias, em que a "mão invisível" do mercado a tudo comanda e a tudo relativiza - e sorrateiramente usurpa o lugar que, teoricamente, deveria caber aos mandamentos de um Deus que exige dos membros de sua aliança obediência estrita a um extenso conjunto de valores éticos, enunciados na Bíblia, e reelaborados, ao longo dos milênios, por gerações e gerações de eruditos e estudiosos. Ou seja, retrata a falência, na terra de Israel, desses mesmos valores judaicos aos quais se referiu ao criticar tão acerbamente a Diáspora judaica. Yehoshua é implacável ao retratar seu próprio tempo e sua própria terra, mas ele recobre com um finíssimo véu de ironia a torrente de ira que marcava os discursos desses seus modelos literários e éticos ancestrais, revoltados, como ele, com as injustiças praticadas contra os pobres e com a opressão dos fracos. Um véu que também parece encobrir e borrar os limites entre o que é justo e o que é injusto, entre o que é moralmente aceitável e o que condenável, e que acaba por envolver a totalidade da narrativa, encobrindo as aporias, o cinismo e os descaminhos de todos os personagens. Uma enorme zona cinzenta, em que se multiplicam as nuances e as tonalidades, é o que se desenha nesse romance-mosaico. Aqui, como é característico de certa mentalidade contemporânea, já não há mais heróis nem bandidos. Só compromissos e meios-termos, e sobretudo tentativas de manter a paz com o grande ídolo cuja universalidade parece incontestável: a grande máquina da economia de mercado. Yehoshua defronta-se, pois, com o caráter demolidor e aviltador de uma visão de mundo em que o trabalho alienado passa a ser visto exclusivamente como fonte de dinheiro, e o dinheiro - e sobretudo o medo da falta dele - orienta as ações de indivíduos incapazes de conceber alternativas de orientação na vida. Aliás, não é por acaso que o desencadeante de toda a narrativa - um atentado terrorista que vitima uma engenheira de 48 anos, recentemente imigrada do Leste da Europa, e empregada na limpeza noturna de uma grande fábrica de pães - aconteça, exatamente, no mercado. Tampouco parece ser acaso o fato de que essa personagem, em torno da qual gravita toda a narrativa, seja egressa de uma sociedade comunista, que emigrou para Israel porque desejava, simplesmente, estar e viver em Jerusalém. Por isso, não se importava em fazer um trabalho muito inferior ao que lhe seria possível, dadas suas habilitações profissionais, nem em morar num casebre em meio a um bairro de religiosos, na mais absoluta destituição, trajando-se com roupas puídas e mal podendo arcar com suas necessidades mais básicas. Saída de um mundo em que a espiritualidade se tornara caso de polícia, ela buscava a elevação em Jerusalém. Mas acabou literalmente despedaçada pelas forças da economia e da política. Que lugar, então, cabe, na sociedade aqui retratada por Yehoshua, àqueles valores da tradição judaica? Apenas, conforme o retrato pouco alentador que ele traça, os que podem ser compatibilizados com a mecânica econômica: o jornal que acusa de indiferença os empregadores da vítima do atentado pondera a conveniência de divulgar a matéria, pois o dono da fábrica de pães é também o dono da fábrica que fornece o papel em que o diário é impresso. O velho dono da fábrica, por seu turno, decide responsabilizar-se pelas exéquias da vítima, mas só por temer uma desastrosa queda na popularidade de suas mercadorias. E assim por diante. O retrato, primeiro irônico, depois nauseante, que Yehoshua faz dessas formas de pensar e de agir, tão cínicas e vulgares quanto normais e comuns, e do despedaçamento provocado pelas bombas tanto quanto pela lógica rasa da manipulação, no limite traduzem a ruptura das crenças e dos princípios éticos fundamentais do judaísmo. Neste romance, escrito para incomodar, não para distrair; para despertar, não para encantar, Yehoshua, fiel à tradição dos profetas, repete seu implacável clamor. Luis S. Krausz é Doutor em Literatura e Cultura Judaica pela USP e autor de As Musas: Poesia e Divindade na Grécia Arcaica

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