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Desfiguras de linguagem

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Não freqüento filólogos mas os imagino pessoas estudiosas e avessas a confrontos. Nunca ouvi falar de um filólogo fazendo piquete e gritando palavras de ordem - com etimologia estabelecida, é claro. Mas a campanha presidencial americana faz pensar se não está na hora de tomar emprestadas algumas táticas dos defensores de animais. De vez em quando, uma socialite de casaco de pele tem a caminhada na Park Avenue interrompida por um militante que joga tinta vermelha no seu mink. A Peta, organização que propõe o tratamento ético de animais, é useira e vezeira no apelo ao choque como propaganda e conseguiu muitas vitórias ligadas ao uso de animais em laboratório. As palavras, assim como as ações dos bancos americanos, não estão valendo nada neste outono político. E as palavras não só têm significado, como podem mudar destinos. Lá se vão muitos anos desde que, logo após a mudança para Nova York, a minha deficiência na língua inglesa salvou minha filha da vala comum da educação pública em Manhattan. Depois de uma trapalhada no registro de inscrição no jardim de infância da escola mais próxima, corri em pânico para a Secretaria de Educação e pedi ao burocrata para reconsiderar o caso. Ele atendia mães desesperadas como eu diariamente e perguntou se a minha filha era gifted. "Of course!", respondi, orgulhosa por nunca deixar de dar gifts (presentes) a ela, no aniversário, no Natal e no Dia da Criança. Graças à minha ignorância e ao tamanho da fila atrás de mim, o burocrata nos despachou para um teste de inteligência em espanhol, cujo resultado colocou a carioca de 5 anos num dos melhores programas públicos para crianças gifted - com inteligência acima da média. Não estará na hora de criar uma associação protetora da língua dos assaltos praticados nos laboratórios das campanhas? Como se não bastassem oito anos de um presidente que gerou o termo bushismo, tal a loquacidade com que comete frases incompreensíveis ("Eles não têm o menor desrespeito pela vida humana", numa referência aos talibãs), esta temporada está desmoralizando substantivos, adjetivos e até o bom nome de figuras históricas. Tomemos maverick. A palavra tem origem na pessoa de Samuel Augustus Maverick um fazendeiro texano que viveu no século 18 e não marcava seu gado. Maverick evoluiu além da referência a um bezerro desgarrado. A palavra passou a significar independência, dissidência política ou intelectual. Até ser laçada pela campanha de John McCain e cair no matadouro semântico. No esforço hercúleo para distanciá-lo da era Bush, os marqueteiros de McCain inseriram maverick em todos os discursos, já que change, mudança, estava comprometida com aquele cara com sobrenome de terrorista. Já era embaraçoso ouvir o termo na boca do candidato Republicano, um milionário, filhinho de papai almirante, que como piloto, derrubou três aviões da marinha americana e mesmo assim conseguiu pistolão para continuar na carreira de oficial. McCain não pode ver um microfone sem lembrar à platéia que é um maverick. E, como sabe que metade dos ouvintes pensa que ele se refere ao modelo de carro que a Ford parou de fabricar em 1999, continua a regurgitar suas credenciais como corajoso e capaz de ir contra o establishment. Entra em cena Sarah Palin, cujo vocabulário limitado provocou uma corrida de assessores para dar um banho de loja verbal na tinhosa governadora do Alasca. E, como uma criança que acaba de aprender uma palavra nova e a repete cem vezes na hora do jantar, Sarah saiu mavericando a torto e a direito, a ponto de um descendente de Samuel Maverick, contatado pelo New York Times, pedir um basta. Nós devemos à comediante Tina Fey, cujas impagáveis imitações de Sarah Palin no programa Saturday Night Live levaram o Times a chamar a candidata de "a outra Tina", um grande momento de reparação. Num sketch sobre o debate dos candidatos a vice, Tina-Sarah, respondeu a uma pergunta sobre como a chapa McCain-Palin ia enfrentar o tsunami econômico. "Nós vamos ser muito mavericky" ("mavericosos"), concluiu. Nenhum comentarista político foi mais longe ao expor a hipocrisia no uso do termo. Como McCain e Palin continuam a expelir expressões que exigem contorcionismo mental, aqui vai uma tentativa modesta de tradução do jargão corrente. Pitbull de batom - É um ente da mitologia esquimó, já que, como qualquer pessoa de bom senso sabe, quem tentar passar batom num pitbull terá um ou mais membros devorados em poucos segundos. Joe six-pack - Originalmente uma referência ao homem comum que toma sua cerveja (vendida aqui em lotes de meia dúzia). Joe six-pack, nos discursos republicanos, é o eleitor branco que ainda desconfia que Barack Obama é muçulmano e, vamos ser francos, detesta a idéia de votar num negro. Amigo de terroristas - Uma variação da munição racista, efetiva até mesmo quando um político republicano de Chicago se diz amigo do "terrorista" em questão. Cortar impostos - Algo que se deve a corporações, enquanto o déficit passa de US$ 450 bilhões. Experiência - Algo que se adquire passando seis anos numa prisão vietcongue e não no comando de patrulhas sob fogo no território inimigo, como John Kerry. O último debate presidencial produziu o "bombeiro Joe", citado inúmeras vezes por McCain como exemplo da vítima do programa de governo de Obama. O democrata foi bater à porta do bombeiro em Ohio para se explicar. Mas ele não entra no nosso glossário porque, depois de tanta fanfarra, se descobriu que este Joe nem se registrou como eleitor. Um legítimo Zé Mané.

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