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Descompassos do homem moderno

Reunidas em um volume, novelas do escritor Luigi Pirandello mostram decomposição do indivíduo envolto em máscaras

Por Aurora Bernardini
Atualização:

Para o escritor siciliano Luigi Pirandello (1867-1936 ), prêmio Nobel em 1934, "entender o jogo" tanto pode significar para o indivíduo descortinar (driblar) a equívoca ambiência social que o envolve, bem como, adotando uma personalidade ilusória, tentar fugir dos limites de sua condição, limites estes porém que, quando imprecisos, podem fazer com que ele resvale na loucura. É por essas três vertentes que se desenrolam algumas das narrativas que compõem essas sintomáticas 40 Novelas de Luigi Pirandello (Companhia das Letras, 492 págs., R$ 30,80), escritas entre 1894 e 1934 e que irão confluir para peças teatrais de grande repercussão. Aliás, foi esse critério adotado para a organização da coletânea pelo tradutor Maurício Santana Dias que mostra, no prefácio, como as 40 novelas escolhidas redundaram em 30 peças elaboradas pelo autor um pouco mais tarde. Isso explica, por exemplo, o caráter marcadamente dramático que as acomuna, seja ele de cunho circunstancial, psicológico ou mesmo filosófico. "Enquanto o mundo se embebia de Saint-Simon, Marx e Bernard Shaw, a Itália tendia a ser individualista e não coletiva, filosófica e psicológica e não social", diz Carol McLeanton em seu The Age of Pirandello. "E era uma vergonha a condição das mulheres na sociedade italiana que, ao negar-lhes os direitos humanos elementares (elas passariam a votar só em 1948), as obrigava a uma subordinação em que só podiam trapacear e afogar seus melhores sentimentos." Prova disso é - na época das heroínas de Ibsen, das vitoriosas sufragistas inglesas, americanas e das populistas russas - a preocupação feminina constante que se vislumbra nesses contos pirandellianos de "fisgar" um marido, refugiar-se na maternidade ou esquivar-se, pelo sacrifício, pela "perdição" ou pela trapaça da condenação tacanha e inexorável da moral corrente. As primeiras duas, prerrogativas das mulheres de extração mais baixa e a última, apanágio das artistas e de algumas mulheres cuja circunstância as levou a serem um pouco mais autônomas: "A grande Pompea (a cantora lírica de Tirocínio) naturalmente não o deixou escapar. Porém, considerando a própria constituição física e prevendo que, com o passar do tempo, ele talvez perdesse o apetite por tanta abundância, encontrou logo meios de pôr à sua disposição uma graciosa filhinha." Esse tom farsesco, levado adiante por Pirandello com uma maestria toda especial quando da narrativa passa à cena, cede aos poucos espaço para o que o autor, no tratado O Humorismo, chamou de "sentimento do contrário". Não se trata de "rir de volta para a vida", como propunha Isak Dinesen, mas, "devido à reflexão inserida no germe do sentimento, feito um visgo maligno, trata-se de despertar as idéias e as imagens em contraste com esse sentimento". Algo como o que Giordano Bruno caracterizou como "In tristitia hilaris". Resulta disso uma espécie de decomposição, de livre movimento da forma e da percepção que faz com que o indivíduo veja e sinta sua própria máscara exterior (o disfarce que ele veste para viver), mas ao mesmo tempo não deixe de criar uma máscara interior. Enfim, é a desunião interna do homem moderno, obviamente, com a superação do cômico e, às vezes, com a passagem poética para o terrível, o horror. Em A Mosca e especialmente em Com a Morte em Cima, o terrível funde-se ao patético. Mas há ainda uma outra dimensão, crucial nesse conjunto de narrativas que, com o drama psicológico pós-dostoievskiano, foi responsável pelo reconhecimento mundial de Pirandello: a das personagens. Nas narrativas Personagens, Tragédia de Uma Personagem e Conversas com Personagens (o germe de Seis Personagens em Busca de Autor), trata-se, entre outras, de questões filosóficas em que "o pensamento vê a si mesmo", a consciência é "o espelho interior em que o pensamento se mira" e a volubilidade em que as personagens se vêem "expressa a sua essencialidade". As personagens que mudam de ser a cada nova forma levam a se ter consciência da possibilidade de muitas alternativas. É nesse processo de busca - que o pragmatista Richard Rorty, em seu testamento (Filosofia como Política Cultural) chamou de "redenção", que o leitor/espectador se torna um ser autônomo: "No Ocidente, o intelectual esperou essa redenção primeiro de Deus, depois da filosofia e, finalmente, da literatura. Isso porque a literatura permite travar conhecimento com uma grande variedade de seres a que foi dado o nome de Deus ou de Verdade, respectivamente pela religião e pela filosofia." Aurora Bernardini é professora de pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP)

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