Desafios para um mundo em agonia

Adorno, Benjamin e Marcuse, os principais filósofos alemães da Escola de Frankfurt, são o tema da edição especial da Cult

PUBLICIDADE

Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

O século 20 foi pródigo em apontar que alguma coisa sempre esteve fora da ordem, apesar das teorias contrárias, com motivações apaziguadoras. A razão instrumental se enfraqueceu. A barbárie mostrou suas garras. O mundo rejeitava os enquadramentos teóricos. Os sistemas filosóficos faliram diante da violência sem precedentes. Novos tempos exigem novos olhares. A parada era dura para aqueles que se dignaram a pensar os rumos assustadores da História. Assim mesmo, alguns homens resolveram responder aos apelos desse mundo mergulhado na agonia e na perplexidade. Eles formaram um núcleo de produções teóricas abrigado no Instituto de Pesquisas Sociais, na Alemanha. Theodor W. Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, representantes principais daquela que talvez seja a instituição filosófica mais importante do século passado, são o tema da edição especial da Cult, dedicada à Escola de Frankfurt. Embora não se possa dizer que a entidade alemã seja uma escola filosófica no sentido estrito, é inegável que ela representou um quadro institucional independente no Instituto de Pesquisas Sociais, criado pelo milionário Felix Weil e dirigido pelo carismático Max Horkheimer. Era um grupo de pensadores alemães de esquerda que buscou um novo modelo de análise filosófica e social, chamado de Teoria Crítica. Eles pediram auxílio a Hegel, Marx e Freud, na tentativa de unir teoria e prática na crítica ao capitalismo. As divergências doutrinárias impediram, com o tempo, a continuidade desse projeto. O legado, no entanto, estava consolidado. Cult traz 12 ensaios divididos em 3 seções, cada qual dedicada a um filósofo. A primeira seção é sobre Adorno (1903-1969). Em Resistir às Sereias, Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia da PUC-SP e autora de Lembrar, Escrever, Esquecer, analisa o episódio central de Dialética do Esclarecimento (1947), escrito por Adorno e Max Horkheimer - o Canto XII, da Odisseia, que trata dos apelos sedutores das sereias a Ulisses. A passagem do livro de Homero serve para discutir como a racionalidade técnica escravizou os indivíduos, apesar da promessa de emancipação. "Em vez de ajudá-los a alcançar a tão desejada liberdade, o Esclarecimento sujeita os homens tanto aos poderes econômico-sociais (Marx) quanto aos poderes econômico-psíquicos (Freud)", escreve a professora. Esclarecer, nesse caso, significou jogar sombras. A barbárie, por vezes, veste a máscara da civilização. Por entre a realidade enquadrada da vida burguesa se vê outra realidade que não é nada linear. Professor de teoria literária na Unicamp, Márcio Seligmann-Silva aborda, entre outros temas, em Crítica e Rememoração, a rejeição de Adorno aos sistemas de ideias. O filósofo preferiu o ensaio e os fragmentos como formas privilegiadas de expressão. A escrita filosófica se mesclou com a literária. "A verdade é pensada, deste modo, a partir do transitório e não de uma suposta eternidade", afirma Seligmann-Silva. O ensaio tornou-se a forma mais fiel à análise da realidade e do seu conteúdo transitório do que os conceitos fechados. Adorno captara que, no discurso, assim como na vida, o choque dos elementos opostos resultava na força iluminadora. O pensamento, assim, revela-se aberto e tenso, característica acentuada na produção teórica de Walter Benjamin (1892-1940), autor de A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica (1936). Na opinião desse pensador, segundo Márcio Seligmann-Silva em Walter Benjamin e a Tarefa da Crítica, era preciso "recriar a crítica como gênero", até para combater a "ditadura da resenha como forma de pesquisa". A teoria benjaminiana se opôs à teoria da história, tanto a liberal como a marxista, que entendia a evolução histórica como um avanço constante e positivo. Ele dizia que a imagem da história era um acúmulo de catástrofes. Daí ele perceber o presente como uma construção feita sobre as ruínas do passado. Era uma luta contra a mistificação do que já foi e do que está sendo. O teórico alemão jogou luzes sobre o fundo religioso existente no projeto civilizatório do Ocidente, como lembra Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP e autor de Cinismo e Falência da Crítica, em Atravessar a Modernidade Dobrando os Joelhos. Benjamin mostrou que a vida moderna era organizada com base numa visão religiosa do mundo que não se manifesta com clareza - "o progresso só conseguia sobreviver com um coração arcaico", escreve Safatle. Ao mostrar que os objetos históricos estavam inseridos num contexto falso e frágil, Walter Benjamin propôs manejá-los dentro de uma nova ordem, compromissada com os interesses do presente, e não com os ideais religiosos partilhados pela família burguesa. Seu projeto de historiografia, de acordo com Safatle, "inspirado no trabalho do catador (que se volta para o esquecido e considerado inútil), ainda hoje pode ser comparado a um pólen que guarda uma assombrosa força de germinação". O bloqueio dessa realidade engessada também pode ser rompido pela arte, segundo Herbert Marcuse (1898-1979), filósofo fundamental para a rebeldia dos anos 1960, autor de Eros e Civilização. Ele não acreditava no engajamento político das obras de arte, explica Rodrigo Duarte, professor de filosofia da UFMG, em Da Cultura Afirmativa à Subjetividade Criativa. O poder da arte de evocar um princípio de realidade diferente do vigente teria a libido como berço. Marcuse valorizou as energias vitais contra os limites à plena realização dos homens. A arte, segundo Marcuse, não pode ser um espaço de prazer - reduzido a um cantinho no interior do indivíduo -, que serve apenas de remédio ao cotidiano opressor, de manipulação das consciências e exploração do trabalho. A criação artística não passaria, assim, de consolo num mundo imutável. Contra isso, Marcuse apresentou a fantasia, arma poderosa dos indivíduos que se pretendem livres.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.