Dépardon e as mudanças na França profunda

Diretor retoma seus perfis de camponeses no admirável Vida Moderna, que fez sucesso em Cannes, e afirma que o teatro está na base do documentário

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Para o espectador brasileiro - para o cinéfilo que curtiu a nudez de Leila Diniz em Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos Oliveira -, um filme como Vida Moderna, do francês Raymond Dépardon, talvez possua um significado um pouco diverso daquele pretendido pelo diretor. Você deve se lembrar, no grande filme de Domingos, como a câmera acariciava a beleza de Leila e de como a música de Gabriel Fauré realçava o clima amoroso das cenas. Nada mais diverso de Todas as Mulheres do que o novo documentário de Dépardon, exibido na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, em maio. Mas Dépardon, como Domingos, embala seu filme na música de Fauré. A câmera avança por uma estrada gelada do interior da França. A neve cobre os campos, caem os flocos e o tema musical é o mesmo que emoldura Leila, a mulher solar de Domingos Oliveira. É lindo, mas esse estranhamento é coisa que talvez só o espectador brasileiro possa fazer. Na tela, em Vida Moderna, o que se vê é a investigação do diretor, filho de agricultores, sobre uma França profunda, interiorana, que está desaparecendo. Criadores de gado, pequenos agricultores, em geral homens e mulheres de uma certa idade, que reclamam da vida e dos impostos, mas que amam o que fazem. Repórter fotográfico para importantes agências internacionais, Dépardon fotografou as Guerras da Argélia e do Vietnã e em 1977 ganhou o Prêmio Pulitzer. Muitos críticos comparavam a beleza de seu trabalho como fotógrafo ao de Henri Cartier-Bresson, mas em Cannes Dépardon ressaltou que havia uma diferença importante. No tempo de Cartier-Bresson, a fotografia ainda não era considerada arte e isso o obrigava a fazer fotos de grande elaboração (e beleza) visual, justamente para vencer as resistências. Hoje em dia, a foto é considerada arte e os fotógrafos não estão mais obrigados a fazer esse trabalho de ?maravilhamento?. Ele pode fotografar seus camponeses como são - pessoas simples, ligadas à terra, em ações muitas vezes banais. Dépardon gosta de dizer que é mais intimista e poético quando fotografa. Quando filma, é militante. "Filmo para expressar alguma coisa, como uma forma de combate ou luta contínua." E contra o que ele combate, você é imediatamente tentado a perguntar? "Contra as instituições e contra o poder que se manifesta principalmente nas organizações que regem a vida nas cidades. Meus filmes discutem a polícia, a Justiça, a psiquiatria, a imprensa. São filmes que obtêm repercussão na França e que são minhas contribuições ao exercício da cidadania." São obras como Presos em Flagrante (Délits Flagrants), de 1994, e Instantes de Audiência (10ème Chambre), dez anos mais tarde. Em 2000 e 2004, Dépardon traçou uma série de perfis de camponeses. Ele volta agora a essas pessoas para perguntar o que mudou na vida delas. Encontra um velho amuado porque seu irmão se casou e agora eles têm uma mulher ditando regras na casa. Encontra outro casal que sonha com a expansão de seu pequeno negócio. Dépardon, que recebeu dois César, o Oscar francês, de melhor documentário, por Reporters e Délits Flagrants, reconhece que seu trabalho é fiel a uma idéia - sua necessidade de registrar um mundo que vai desaparecer. Para ele, o verdadeiro documentário "fica muito próximo do teatro". Este teatro da casa, da família, das refeições faz o fascínio do seu cinema. Serviço Unibanco Arteplex 1 - Sáb., 16 h Cinemateca - Sala BNDES - 6.ª (24), 20h40 Unibanco Arteplex 2 - 2.ª (27), 13h30

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