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Democracia sonegada

Sinopse

Por Daniel Piza e E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
Atualização:

Concordo com o nobre senador Renan Calheiros: a culpa é da imprensa. Afinal, a imprensa demorou demais a revelar que o Senado tinha triplicado o número de diretores; a imprensa até agora não esclareceu quem pagava as contas da mãe de seu filho, Monica Veloso, e onde estão as empresas cujas notas ele brandiu como provas de inocência; a imprensa não contou como é que seu correligionário José Sarney conseguiu sacar o dinheiro do Banco Santos um dia antes da operação da PF; a imprensa não explicou o que está se passando com o tal "G-8", formado por peemedebistas como Jader Barbalho. E ponha um etcetera do tamanho de Brasília, abrangendo desde a filha de Fernando Henrique Cardoso - que desempenha a digna função de zelar pelo acervo de Heráclito Fortes, certamente um tesouro documental à altura do homônimo da Grécia Antiga - até o irmão de Franklin Martins, o filho do presidente Lula, as relações de Marcos Valério e Delúbio Soares com estatais como o Banco do Brasil (esse que "o cara" quer que seja maior que o Itaú Unibanco). A culpa é da imprensa, que sempre conta tarde e conta pouco. O poder à brasileira, como avisou Joaquim Nabuco há mais de cem anos, é um círculo oligárquico, um clube no qual se revezam pessoas das diversas origens e classes - aproximando fazendeiros e sindicalistas, ONGs e empreiteiras - sem que seu isolamento seja rompido a sério. Logo, a imprensa é apenas um obstáculo eventual em sua comunicação direta com o povo, como Lula não se cansa de dizer. De vez em quando alguém tem algum surto individual, como Pedro Collor e Roberto Jefferson, e decide expor um apêndice das tripas podres da política tropical. Convoca um contato da imprensa e, "scoop!", a notícia cai como uma bomba. Mas é uma bomba de pequeno impacto e sem efeito moral. Quando a poeira baixa, os experimentos destrutivos voltam a minar a máquina pública em silêncio, longe do olhar complacente da mídia. As aparências democráticas são restabelecidas; alguns vão para a sombra até que possam ressurgir como se nada tivesse acontecido, como Collor, Barbalho ou Palocci - ou então fazem como Tião Viana e Tasso Jereissati e dizem que gastar fortunas públicas com celulares e jatinhos é permitido pela lei. O pior é que a ideologia oligárquica não é exclusiva dos ocupantes de cargos oficiais. Ela se encontra todo dia nas mesmas pessoas que se dizem tão indignadas com os políticos nas pesquisas de opinião. Assim como FHC e Lula falam das mazelas brasileiras como se fossem meros observadores, os cidadãos reclamam de comportamentos que eles mesmos repetem. Pessoas com diplomas universitários e vidas para lá de confortáveis justificam sonegar impostos. Dizem, por exemplo, que a formação de quadrilha e o contrabando por parte do maior centro de luxo da nação, a Daslu, não bastam para a prisão de ninguém, mesmo que tenham prosseguido depois das primeiras multas. Afinal, como diziam os hippies nos anos 70, a culpa é do sistema e "corrupção existe no mundo todo". O mesmo argumento é usado para as licitações fraudadas e a praxe das propinas, que são pagas para "evitar problemas" ou "driblar a burocracia" no país do futebol alegre. Pois Renan não está sozinho: mesmo os assalariados dão um jeitinho de gastar menos do que a nota fiscal diz. Recebi emails de leitores se queixando de que me referi a essas barbaridades da "zelite" brasileira ao comentar o romance recém-lançado de Chico Buarque. Curiosamente, também recebi queixas por ter descrito brevemente o estrago cultural do regime militar de 1964. Na maioria dos casos o que me parece haver, nas tais classes "educadas" como entre os mais pobres, é uma cultura condescendente com o autoritarismo, com o rouba-mas-faz, com o uso do poder para fins pessoais - ainda que muitos digam o contrário nas enquetes. Li muitas vezes, por sinal, que o livro de Chico teria sido influenciado pelas ideias de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, mas pelo visto ninguém lê Raízes do Brasil, que mostra como o conceito liberal de interesse público não fez parte da colonização local. O que Chico descreve é o Brasil de Gilberto Freyre, oligarca que, no estudo Casa Grande & Senzala, não se privou de relembrar os prazeres dengosos que mulatas lhe deram na infância. E defender a tese de que eles constituem uma base para nossa democracia multirracial. Deve ser por isso que, em festas da classe alta a que já fui, volta e meia me deparei com uma empregada negra em pé durante a noite toda apenas para apontar a porta do banheiro para os convidados. Ela talvez não seja nem registrada em carteira, mas certamente ganha, entre uma ordem e uma bronca, "presentinhos" do patrão como roupas e comidas, tal como numa crônica de Machado de Assis. Essa cultura oligárquica, claro, se vê também nas artes, que aí estão para mostrar nosso valor, como o filme que a família Barreto faz sobre Lula - ou outros em que a classe média urbana é que é a maior das culpadas, talvez porque fique consumindo essa mídia maledicente. A realidade, porém, é ainda mais amarga. Debaixo de tantos aplausos, nas mais diversas camadas da sociedade, o que se sonega é a democracia. CADERNOS DO CINEMA Fui ver no sábado retrasado o documentário Garapa, de José Padilha, no festival É Tudo Verdade, no Cinesesc. Por segundos me passou pela cabeça a ideia de que esse tipo de filme tem ao menos a função de mostrar a uma plateia como aquela um Brasil que ela desconhece. Mas é muito pouco, não? Já na adolescência tive noção clara da realidade nacional circulando pelo centro de São Paulo e vendo, por exemplo, um mendigo apanhando um rato para comer. O documentário segue o velho estilo da filmagem em P/B, com closes-para-chorar das sujeiras e doenças em meio a demoradas cenas do cotidiano de três famílias no Ceará, duas no sertão e a outra na periferia de Fortaleza. As perguntas, escassas, são sobre a presença do poder público na forma de cestas básicas e orientação sexual, que ocorrem eventualmente. Mas não é preciso ser bom observador para ver que a omissão do Estado é gritante naquilo que poderia ter efeitos mais duradouros, como saneamento básico, irrigação, educação e geração de empregos. Uma mulher diz ter 11 filhos e basta olhar para verificar que não há condição para criar nem mesmo dois. Talvez fosse igualmente importante que os documentaristas mostrassem algum contraponto, como em Petrolina (PE), onde a situação melhorou bastante por uma série de razões que vão bem além do assistencialismo. TERPSÍCORE Com a São Paulo Companhia de Dança, nasce um grupo que, embora mal tenha um ano, já mostra profissionalismo raro no Brasil. Os programas mesclam grandes obras do passado com trabalhos atuais, em geral encomendados, e essa mescla não tem o efeito indesejado de acentuar o contraste. Na noite a que fui, vimos primeiro Serenade, uma das melhores coreografias de Balanchine, um criador que fez pela dança o que Matisse ou Miró fizeram pela pintura. O talento de Luiza Lopes, a protagonista, é uma revelação. No final, quando é erguida pelos tornozelos, ela fica tão perfeita e graciosamente ereta que demoramos a acreditar no que vemos. Na segunda parte, Ballo, de Ricardo Scheir, com encenação de Marcio Aurélio e música de André Mehmari, ela reaparece como uma das duas mulheres que dançam & enfrentam três rapazes no meio do palco, numa cena de muita criatividade e sensualidade. A coreografia não mantém o nível o tempo todo, mas responde bem à colagem de Monteverdi, Bartók e outros que Mehmari construiu tão habilmente. Como em Balanchine, a dança dialoga com a música sem ser literal nem linear, e as surpresas e levezas se sucedem. POR QUE NÃO ME UFANO Não precisou esperar nem um ano para ver que a tal Lei Seca não funcionou. Me criticaram muito quando alertei para o radicalismo injustificado do texto e para o fato de que a diferença estava na fiscalização, historicamente ausente; como nem sequer havia bafômetros suficientes, a tendência óbvia era a de que, com a redução das blitze, as coisas piorassem de novo. Dito e desfeito. No carnaval o número de mortes nas estradas aumentou, e agora saiu essa confirmação de que o uso de álcool por motoristas voltou aos índices de 2007. Quanto à proibição de fumar em locais fechados, também acho um exagero; é uma forma de discriminação. Se forem bem reservadas e ventiladas, as áreas especiais não provocam fumo passivo, provocam? No caso, a lei tem chances de pegar, porque há multas pesadas e os estabelecimentos em geral não perderão muito com ela; além disso, passa imagem de preocupação com a saúde e sintonia com a atualidade. Que seria possível um meio-termo entre o respeito à maioria e o direito da minoria, porém, não tenho dúvida. Aforismos sem juízo A inteligência é a única virtude indomesticável. ''O poder à brasileira é um círculo oligárquico. O pior é que a ideologia não é exclusiva dos cargos oficiais'' ''É o país de Gilberto Freyre, que não se privou de relembrar os prazeres que as mulatas lhe deram''

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