Debret: um neoclássico diante da miséria tropical

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Por Redação
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A recente publicação do catálogo com o levantamento de todas as obras realizadas por Jean-Baptiste Debret no Brasil - e também daquelas feitas a partir de estudos elaborados aqui, como as litografias de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, executadas no seu retorno à França, em 1831 - ajuda a compreender com mais precisão os dilemas artísticos que ele enfrentou nos 15 anos em que viveu no País. De fato, Debret e o Brasil - obra completa 1816-1831, de Julio Bandeira e Pedro Corrêa do Lago, da Editora Capivara, além de trazer o resultado dos estudos meticulosos de uma comissão que pela primeira vez tenta determinar a totalidade dos trabalhos brasileiros de Debret, possibilita a comparação de obras muito distintas entre si, como os óleos realizados por encomenda de nobres portugueses e da Corte e os estudos de cenas do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. E o cotejo de soluções artísticas tão diversas - tanto em sua qualidade quanto em seu aspecto formal - nos oferece uma medida mais efetiva de seus esforços e dificuldades para dar conta de uma realidade quase oposta à que conheceu na França. Realmente, a adaptação de Debret ao Rio de Janeiro enfrentou obstáculos consideráveis. Seu grande mestre foi Jacques-Louis David (1748-1825), o maior pintor francês do período, que era seu parente. Formado na tradição neoclássica francesa, uma arte de formas rigorosas e temas heróicos fortemente ligada à Revolução Francesa e posteriormente a Napoleão, o pintor encontrou no Brasil uma situação social oposta à que conheceu na França: escravidão, uma família real praticamente exilada, uma vida urbana precária e pouco complexa. Nesse ambiente, a concepção neoclássica de arte, regida pelas noções de exemplo e virtude, não poderia fazer sentido. Sem falar que a própria rusticidade da vida social carioca mal criava oportunidades de trabalho para pintores. E assim não causa espanto que em toda sua estada brasileira Debret só tenha realizado cerca de 30 quadros - dos quais apenas 15 já foram reencontrados -, em geral de pequenas dimensões e com mais jeito de estudo que de obra acabada. Uma análise de sua tela brasileira mais ambiciosa - Coroação de D. Pedro I, terminada em 1828, com 3,80 x 6,36 metros, hoje no Itamaraty, em Brasília - revela as dificuldades com que o pintor deparou ao tentar exaltar a monarquia brasileira e produzir um quadro digno da tradição da pintura histórica. O ponto de vista, a sucessão dos planos, a composição, as cores - tudo conspira para tornar a tela uma espécie de confissão involuntária sobre o caráter postiço das pompas imperiais no Brasil. A espacialidade e a dinâmica do quadro fazem sobressair, paradoxalmente, a amplidão da capela imperial que abriga a coroação e o acanhamento da cerimônia. O ponto de vista central, que coincide com a orientação do prédio, e bem aproximado forçam a perspectiva a um movimento abrupto em direção ao fundo. E quase nada - com a exceção dos oito longos castiçais e dos pesados candelabros que pendem do teto - detém seu movimento, pois a disposição do público praticamente coincide com o traçado regular do prédio. Por seu lado, o tonalismo lavado que domina a tela - tons de salmão e verde - tende a reduzir a eficácia daquele espaço que se queria grandioso, ao aproximar excessivamente todos os elementos do quadro. À direita, mesmo colocado em primeiro plano, d. Pedro I se mostra quase caricato em sua pose imperial, atropelado por dois movimentos incompatíveis - amplidão e proximidade -, que revelam os limites, no Brasil, da majestade protocolar. Em toda sua estada brasileira, Debret procurou participar da vida pública do País, uma preocupação que vinha de sua politizada formação francesa. Em 1818 - com Grandjean de Montigny e Auguste Marie Taunay -, contribuiu na elaboração dos monumentos comemorativos da aclamação de d. João VI: um templo grego, um arco de triunfo romano e um obelisco egípcio, feitos de madeira e papel pintado. E, antes de pintar a grande Coroação, realizou várias outras atividades oficiais, de um projeto para a bandeira e os brasões do Império aos cenários e panos de boca do Real Teatro São João, sem falar das aulas na Academia Imperial de Belas Artes - o objetivo de sua vinda e dos outros artistas franceses ao Brasil -, que só começaria a funcionar em 1826, dez anos após sua chegada. Desde o começo, Debret parece interessado em encontrar uma forma de representação mais condizente com a realidade do país. As aquarelas que executa desde 1816 - mais numerosas a partir da segunda metade da década de 1820 - têm uma configuração diversa daquela dos quadros a óleo, voltados ao gosto de quem os encomendava ou poderia vir a encomendar. Não há dúvida de que quase todas têm uma preocupação documental e o artista já devia ter em mente a publicação da Viagem Pitoresca, editada entre 1834 e 1839 pela casa parisiense Firmin Didot, em três volumes. Vários outros artistas estrangeiros estiveram por aqui no mesmo período de Debret: Rugendas, Thomas Ender, Chamberlain, Maria Graham, entre muitos outros. E também eles buscaram documentar um mundo muito diverso do que conheciam em sua terra natal. Apenas Debret, porém, abdicou dos esquemas formais que trazia na bagagem para se arriscar em novos rumos. A liberdade proporcionada pelas aquarelas - feitas por iniciativa própria, sem visar ao mercado e tecnicamente mais aptas à investigação - tornou possível incorporar ao próprio traço e à ordenação das figuras aspectos decisivos da vida social do Rio de Janeiro. E um aspecto marcante de seu trabalho reside na atenção que dedicou aos escravos de ganho, que pertenciam a um grande número de homens livres - o que ajuda a entender como as vilezas da escravidão se espraiaram por todo o País - e passavam o dia em função de diversas tarefas, da venda de refrescos ao calçamento das ruas, e que no fim da jornada precisavam acertar as contas com seus donos. Basta observar Família pobre recolhendo o produto do trabalho da negra velha que carrega água (na ilustração maior) para se ter uma boa idéia da perspicácia de Debret. A precariedade de nossa vida social não se mostra apenas na cruel ironia da situação: mulheres brancas que vivem miseravelmente, mas ainda assim exploram o trabalho de uma escrava velha. Tudo na aquarela contribui para revelar o caráter ruinoso da situação. Os tons de terra que dominam toda a cena, a fragilidade dos corpos e de sua capacidade de ordenar o espaço, a constituição frágil de pessoas e coisas contribuem para apresentar de maneira notável os esgarçamentos daquela forma de existência. No entanto, talvez sejam seus estudos, desenhos feitos com aquarela ou a lápis, que revelem de maneira ainda mais esclarecedora os esforços de Debret para lidar com um mundo estranho à sua formação. Em 1939, o industrial Raymundo de Castro Maya adquiriu do marchand Roberto Heymann mais de 500 aquarelas de Debret, que hoje fazem parte do acervo da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro. Essa coleção contém vários desses estudos. Em 2006, a Editora Sextante publicou um livro com a reprodução de um caderno de desenhos de Debret - e introdução de Julio Bandeira - que desde 1901 pertencia à Biblioteca Nacional de Paris e era praticamente desconhecido do público brasileiro. Em suas 64 páginas temos contato com as idas e vindas do artista para aproximar olhos e mãos de novos gestos e situações. E o fato de os desenhos não estarem inseridos em composições maiores propicia um contato intenso com as dificuldades de Debret para, além de delinear com pertinência corpos e coisas, relacioná-los com verdade ao espaço. Tratava-se de incluir na configuração dos corpos algo de sua difícil relação com o meio. E por mais que homens e mulheres sejam representados isoladamente, uma pressão constante parece acompanhá-los. Os contornos tênues, a constituição vacilante das superfícies pelo uso não uniforme da aquarela, os pontos de vista estranhos e a disposição irregular das formas nas páginas retiram dos corpos a autonomia que, na tradição pictórica, com freqüência os livra de uma proximidade excessiva com o espaço circundante. Nesses estudos fica claro que para Debret a escravidão significava mais que a simples representação de açoites ou trabalhos extenuantes, situações que ele também retratou. Mas que eram incapazes de apreender toda a dimensão insidiosa da escravidão de ganho, com suas aparências ambíguas. Com esses estudos, Debret obtinha uma representação da história oposta àquela que orientara seus trabalhos franceses e algumas telas brasileiras. Da visão heróica dos acontecimentos passa para o registro de episódios e pessoas precários, cujas ações mal constituíam uma continuidade capaz de ostentar o nome do que correntemente entendemos por história. Pode não ser glorioso, mas até hoje lembra muito o País em que vivemos.

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