De repente 90 e o mestre continua a testar limites

Merce Cunningham celebra data com o início da temporada de Nearly Ninety em Nova York e comprova seu vigor de artista atemporal que se mantém inventivo

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Por Helena Katz
Atualização:

É com uma muito curta temporada, que vai até domingo, no Brooklyn Academy of Music (BAM), em Nova York, que Merce Cunningham comemorará seu aniversário. Ele acaba de completar 90 anos (nasceu em 16 de abril de 1919, em Centralia, Washington) e a celebração começou com a estreia de Nearly Ninety (Quase 90), obra que dura quase 90 minutos. Depois, a companhia que fundou no verão de 1953, a Merce Cunningham Dance Company, e que hoje conta com 14 bailarinos, segue para Madri, onde dança a mesma obra do dia 30 até 3 de maio. Uma atençãozinha especial à lista de colaboradores da nova peça serve como um cartão de apresentação, caso ainda seja necessário. Em todas as fases da sua carreira, Merce esteve sempre interessado naquilo que ainda não havia feito, e em artistas que partilhavam esse mesmo tipo de inquietação. Para criar a música de Nearly Ninety convidou Sonic Youth, John Paul Jones (ex-baixo do Led Zeppelin) e o compositor Takehisa Kosugi, que também a tocam ao vivo. O palco é desenhado pela arquiteta Benedetta Tagliabue e iluminado por Brian MacDevitt, e o elenco foi vestido por Romeo Gigli. Sua lista de colaboradores é imensa, reunindo, por exemplo, Robert Rauschenberg, Jaspers Johns, Colon Nancarrow, David Tudor, Andy Warhol, o brasileiro Emanuel Dimas de Melo Pimenta, Mark Lancaster, Gavin Bryars, Paul Kaiser, Shelley Eshkar, Daniel Arsham, Josh Johnson, em meio a um populoso e vip et cetera. Merce Cunningham se distingue de todos não somente por estar ativo aos 90 anos, mas sim porque, com John Cage, inventou um modo de pensar a dança que mudou o mundo todo. A parceria se iniciou em 1942, com o espetáculo Credo in Us, e durou os 50 anos seguintes, até a morte de John, em 1992. Na época em que começou a carreira de coreógrafo, já impressionava os críticos, colegas e público sendo descrito como um bailarino de raras qualidades na companhia de Martha Graham, com quem dançou de 1939 a 1945. Não são muitos os que conseguem, ao longo de uma carreira tão extensa, continuamente distender os limites da sua arte. Merce é um deles. Do seu estúdio do 11º andar da Rua Bethune, em Nova York, Merce Cunningham continua a inventar novas danças. Agora, como antes, irriga os seus domínios com as discussões mais importantes em curso em outras áreas. Descentralizou e deshierarquizou o espaço cênico com fluxos de movimento desligados da tirania do significado; trabalhou a dança como linguagem autônoma em relação à música; transformou o acaso em metodologia. A tecnologia sempre o interessou. Algumas de suas coreografias já haviam sido filmadas quando, em maio de 1974, criou A Video Event com Merrill Brockway, e, em seguida, inaugurou um jeito próprio de coreografar para o vídeo com (Wesbeth, 1974). Em 1979, produziu Locale, com Charles Atlas, fazendo a câmera lidar com velocidades, alturas e ângulos inacessíveis ao olho humano para nos alertar sobre o comprometimento da visão que se tem de dança em um teatro. Desde 1991 (Trackers), usa um software para coreografar. O pioneiro LifeForms, hoje um ambiente 3D rebatizado como DanceForms, transformou-se em um dos mais importantes marcos do seu percurso criativo. O fato de o programa permitir uma decomposição do corpo humano levou-o a novas ênfases e a intrigantes modos de entender e ocupar o espaço. Em 1997, avançou ainda mais, ao passar a trabalhar com captura de movimento, com o auxílio de Paul Kaiser e Shelley Eshkar (Riverbed Media). O resultado dessa troca foi a montagem Biped, que estreou em 1999, na Universidade da California em Berkeley. Biped, com seus hologramas dançantes de 6 metros de altura, mais uma vez surpreendeu a todos pelo modo singular com que Merce contribuía para o debate real/virtual. Talvez a associação mais precisa para Merce seja com a membrana, porque, como ela, permanece poroso em relação ao entorno. Com uma produção da mais alta coerência, que reúne cerca de 200 obras, faz da sua dança uma interlocutora sagaz de todos os tempos nos quais foi sendo criada. Com Merce-membrana, caminhamos sempre para onde ainda não estivemos. PERMANENTE CAPACIDADE DE SURPREENDER COMPOSIÇÕES: Depois de todas essas décadas de militância artística, a Merce Cunningham Dance Company ainda faz mais sucesso na Europa do que em seu próprio país. Hoje, já não precisa cancelar espetáculos por falta de público, mas ainda não consegue estender as suas temporadas. Para entender a sua situação, basta reparar que a celebração de uma data como a do aniversário de 90 anos de Merce se faz em somente quatro dias de apresentações no BAM. Propostas artísticas ousadas dificilmente são populares, e a trajetória de Merce caracteriza-se por uma permanente capacidade de surpreender. Um dos marcos a distinguir o seu percurso são os Events. Criados em 1964, em Viena, esse tipo de espetáculo mistura trechos de produções já existentes, e os costura com material novo, além de figurinos e música diferentes dos que compunham as obras originais. Embora possam sugerir uma referência com a técnica de colagem, trata-se de uma habilidade composicional apoiada nos jogos de acaso do I Ching. Cada Event constitui-se como acontecimento único, nunca repetido. Originalmente criados para espaços diferenciados, acabaram sendo apresentados também em teatro. Em São Paulo, em 1994, a companhia mostrou três inesquecíveis Events para um Sesc Pompeia abarrotado por uma plateia mais que entusiasmada.

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