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De onças e avestruzes

Por Daniel Piza
Atualização:

Com todos os problemas que se podem apontar - a começar pela figura do foro privilegiado, ''''lusitana e antidemocrática'''', como disse João Otávio Noronha, do STJ -, a decisão do STF de acolher a denúncia contra o esquema do mensalão tem o mérito intrínseco de esvaziar o discurso de que a reeleição o absolveu, como se não tivesse existido ou como se não passasse do caixa 2 que é praxe nas hostes partidárias brasileiras. Ninguém foi condenado ainda e muitos talvez nem venham a ser, como o ex-ministro José Dirceu, mas há provas, indícios e testemunhos que dão consistência jurídica à denúncia. Esta deixou de ser uma peça de ficção, um ato conspiratório, um delírio direitista. O assalto de uma corrente política à máquina pública, já disse, é rotina tão velha quanto o Brasil, desde os tempos do Onça. Basta ver de onde vem essa expressão, ''''tempos do Onça'''': Onça era o apelido do capitão Luís Vahia Monteiro, governador do Rio de Janeiro de 1725 a 1732, que disse em carta a Dom João VI que ''''nesta terra todos roubam, menos eu''''. Mas, primeiro, um crime não justifica o outro. Segundo, o ''''sacolão'''' - assim definido por ninguém menos que o vice-presidente José Alencar, ex-PL - revela algumas idéias da atual ''''elite'''' no comando do Brasil, principalmente a de que a democracia não precisa de instituições representativas, apenas de contagem de votos. Lula, que foi o primeiro a reconhecer que o PT adotou essa praxe, repetiu no domingo passado que alguns membros do partido cometeram ''''erros'''', mas que isso não atinge o governo. Bem, imagine um presidente de empresa que vê praticamente todos seus diretores e assessores serem afastados por suspeitas seriíssimas; o mínimo que o conselho de administração vai pensar é ''''como o presidente foi irresponsável em suas escolhas'''' ou, em outra variação, ''''só um cego não veria tudo isso acontecendo ao redor''''. Ele está certo quando diz que o governo segue adiante, independentemente de toda a decepção. Seu erro maior, porém, é supor que uma nação se define pelos atos certos ou errados do governo e que o juízo sobre o que é certo ou errado cabe exclusivamente às urnas. Já passa da hora de aquilatar as conquistas brasileiras como obra da sociedade como um todo - algumas vezes com a esfera pública, muitas vezes a despeito dela. Se o País hoje exporta mais, tem moeda estável, reduz índices de extrema pobreza ou ganha respeito de outros países, tudo isso é porque existe gente trabalhando e pensando nessas direções e pressionando os representantes para que tomem medidas relativas. Não foi FHC sozinho que derrubou a inflação; não é Lula quem pessoalmente distribui renda. A sociedade, por meio do voto e de muitos outros caminhos, levou o governo a tomar tais atitudes. Ou alguém dirá que o sonho do PT sempre foi obter o ''''investment grade'''', o atestado de agências financeiras internacionais de que o Brasil tem crédito? O personalismo da opinião política é um sinal de atraso. Nossos governantes bebem nele o tempo todo. ''''Eu fiz o certo, eles fizeram o errado'''', eis seu mote. Lula é exemplo disso 24 horas por dia. Em alguns momentos, é até melhor que seus admiradores, como ao lembrar que o Bolsa Família será tão mais bem-sucedido quanto menos pessoas contemplar. Que não entenda que é justamente essa a crítica dos que apontam ''''assistencialismo'''' é outra história. Mais grave é que pense que o Brasil está muito bem, ''''mais próximo do que nunca'''' da condição de um país justo, pois dá ajuda aos pobres e não atrapalha a classe média. (Os ricos, como se sabe, vivem uma bonança, na expressão de Antônio Ermírio de Moraes.) Confunde popularidade com prosperidade. A maioria talvez concorde da boca para fora com essa lógica de avestruz, que finge que o Brasil - país do futuro, sem terremotos nem guerras, sem racismo nem tristeza - está a um degrau do paraíso. Ou então diz que tem valores éticos irrepreensíveis, como na pesquisa do livro A Cabeça do Brasileiro, de Alberto Carlos Almeida (Record), segundo a qual a tolerância com a corrupção é exclusiva dos pobres mal-educados. Mas a observação dos fatos, ou de seus indícios, não precisa concordar com tais auto-ilusões. O Brasil melhorou, em grande parte por causa da sociedade, mas precisa melhorar muito mais. CADERNOS DO CINEMA Antes de mais nada é preciso dizer que em Santiago, seu novo documentário, João Moreira Salles mostrou coragem. Pode ser que o critiquem por sugerir que hoje é melhor cineasta do que era há 15 anos, mas (1) é verdade e (2) autocrítica é rara em qualquer formato no Brasil. Ele parte do material que filmou com o mordomo de sua casa na Gávea, um italiano que misturava português com espanhol e era cheio de manias e histórias; e mostra como, apesar de já ter 30 anos de idade e uma biografia cheia de oportunidades culturais, não soube usar aquele personagem que, mesmo assim, vemos como é interessante. De fato, a filmagem é dura, obsessiva com acabamentos, avessa a acidentes e casualidades - exatamente o oposto do que o diretor faria depois em Nelson Freire, por exemplo. Tudo é enquadrado a meia distância, sem closes, e cada cena repetida como se para preencher um roteiro inflexível. As perguntas são manipuladoras ou constrangedoras, como aquelas sobre ''''o espanto'''' de ter vivido isto ou aquilo. Santiago mostra pilhas com nada menos que 30 mil páginas de textos copiados e comentados sobre todas as nobrezas que já pisaram na Terra, mas em nenhum momento lhe fazem a pergunta básica: ''''De onde vem esse fascínio?'''' Em outras passagens, ouvimos a equipe tratando-o com autoritarismo. Quando ele alude ao fato de ser um ''''maldito'''', sugerindo querer falar sobre sua homossexualidade, é imediatamente cortado. Mas também esse segundo filme, esse filme-sobre-um-filme, tem problemas. O que me incomodou foi o tom didático da narração em off, que soa como um curso de roteiro. Não por acaso, a certa altura cede ao simplismo e explica o problema todo pelo fato de que ''''Joãozinho'''' tratou Santiago como a um empregado. Essa leitura, que soa como mea-culpa social, não é aprofundada. Sua família é vista rapidamente, em cenas de época, mas ninguém - entre os familiares e os outros empregados vivos - é chamado a falar sobre o mordomo, que disse que a maior felicidade de sua vida foi um brinde do patriarca a um de seus aniversários. Não conhecemos a relação específica entre Santiago e a família, que está longe de ser um padrão, mesmo entre pessoas de igual nível social. Dá muito o que pensar. Por exemplo, em como existe no Brasil uma tradição de ricos filmando pobres com olhar paternalista; ao mesmo tempo que o querem proteger, falsificam sua identidade. Eis um tema machadiano por excelência. Outro tema é o que está na frase do escritor chileno Roberto Bolaño: ''''A América Latina é o asilo de loucos da Europa. (...) Um asilo selvagem, empobrecido e insano, onde, apesar de seu caos e corrupção, se você abrir bem os seus olhos, pode ver a sombra do Louvre.'''' Santiago é um pouco isso, uma máquina registradora de nomes e obras, mas também dotado de uma sensibilidade própria e bem-humorada. Mesmo sendo um filme sobre outro filme que não foi feito, resgatar mais de Santiago talvez fosse possível. RODAPÉ Falei em Machado de Assis acima. Sobre ele, Luiz Roncari diz coisas no livro O Cão do Sertão (Unesp) que certos acadêmicos insistem em não entender. Sobre Dom Casmurro, nota que a tese de que o narrador não é confiável não significa que tudo que ele diga seja uma farsa, sem credibilidade factual alguma. ''''A perspectiva do narrador não pode ser considerada inteiramente irrelevante porque parcial, ela traz dados importantes para complementar a do autor.'''' O livro traz também ensaios agudos sobre Guimarães Rosa e Drummond. A ARTE DE VER Finalmente uma editora, a Cosac Naify, publica Entrevistas com Francis Bacon, de David Sylvester. Para quem acha que sua pintura é tradicional ou ilustrativa, nada melhor do que as próprias respostas dele. Sua figuração não é naturalista, não pretende imitar a realidade, mas reinventá-la; o tema é importante, mas como ''''isca'''', a partir da qual se mergulha na linguagem. O poder de sua pintura, digo eu, está no contraponto entre os corpos contorcidos e agoniados com a indiferença quase plena do ambiente, asséptico como um ambulatório; no entanto, um não existe sem o outro. Bacon tenta o equivalente visual do mundo descrito por T.S. Eliot, de homens ocos em terras devastadas. E diziam que o figurativismo estava morto. POR QUE NÃO ME UFANO O governo continua se esforçando para se isentar de culpa na crise aérea e na falta de segurança dos aeroportos. Mas os fatos atrapalham: a Anac, por exemplo, já sabia há muitos meses do alerta de que aviões poderiam ''''varar a pista'''' de Congonhas e nada fez. Denise Abreu já saiu, mas e o restante de Anac e Infraero?

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