Datas, dados e delírios

PUBLICIDADE

Por Daniel Piza
Atualização:

Há no Brasil uma tola carência por um momento fundador. Só isso explica que se pintem tantos momentos fundadores. Lendo e vendo especiais sobre a chegada da corte portuguesa há 200 anos, a sensação é que o Brasil começou ali e que tudo dali se derivou. Mas, como em tantos outros mitos da nacionalidade, tal imagem é muito mais uma construção produzida pelo futuro do que uma descrição exata do passado. Isso aconteceu com Tiradentes, alçado pelo movimento republicano à condição de mártir precursor; com Aleijadinho, transformado pelos modernistas paulistas em criador da arte essencialmente mestiça e dionisíaca que seria a brasileira; com Getúlio Vargas, autor do Brasil ''''moderno'''', industrial; com Arthur Friedenreich, filho de negra com alemão que teria iniciado o futebol-arte nacional; etc., etc. Torna-se pleno o que é parcial. É claro que a vinda de Dom João VI é um fato determinante na história do Brasil. Primeiro, por significar que o império luso-brasileiro teria outro centro geográfico, que em realidade já era seu centro econômico; segundo, por lançar bases institucionais que seriam esboço de uma nação, como banco, biblioteca, imprensa, etc. Mas acreditar que isso seja o mesmo que dizer que a monarquia se instalou no Brasil para fundar um novo império na América flerta com o delírio. Como disse o historiador Evaldo Cabral de Mello, esse discurso não passou de ''''jogo de cena para macaquear a fuga em ato de grande sabedoria política'''', de acordo com as conveniências de Portugal. Sim, já existia o projeto de transferir a corte para o Rio; sim, homens como Visconde de Cairu elaboraram uma defesa aparentemente liberal desse projeto. No entanto, foi a pressão da Inglaterra e o medo de Napoleão que definiram a decisão; nada mais. Portugal era então um país atrasado no desenvolvimento europeu, pré-industrial, e não o vanguardista da navegação que era em 1500. Ao mesmo tempo, o Brasil crescia, formava aos trancos e escambos um mercado interno, e os portos formalmente abertos por Dom João VI quando passou por Salvador já tinham atividade comercial intensa. Os festivos do bicentenário alegam que o gesto foi fundamental para que o Brasil se preservasse como monarquia e, assim, não se dissolvesse em republiquetas como acontecera no resto da América Latina. Com essa tão decantada ''''unidade nacional'''', porém, o Brasil também adiou o progresso de sua civilização, tal o peso centralizador e antiprodutivo da burocracia lusitana. Apesar de algumas teses mais iluministas, como as de José Bonifácio - outro pós-convertido em mito, como patriarca da Independência, ainda que mal tenha conseguido passar quatro anos na vida política nacional -, o regime aqui instalado estava muito mais próximo do despotismo suavizado. Afinal, o próprio Adam Smith deplorara a exploração colonial ao estilo ibérico. Há, portanto, uma ambigüidade no processo gerado, ou melhor, representado pela transferência da corte. Se a monarquia garantiu o amplo território e certa estabilidade ou moderação ao longo do Segundo Reinado, abriu espaço para que todos os golpes conservadores do futuro se justificassem com a defesa da ''''unidade'''' ou ''''segurança'''' e criando a mitologia de que ''''o Brasil tem tudo''''. Curiosamente, nestes tempos atuais de nacionalismo oficial, em que os críticos do poder são rotulados de ''''fracassomaníacos'''' (FHC), de ''''torcerem para que o Brasil não dê certo'''' (Lula), a mídia decidiu converter Dom João VI e Dom Pedro II em sábios, em grandes estadistas - inclusive a mídia que se diz de oposição, nessa velha tradição brasileira dos inimigos que se abraçam... Outra conseqüência de tais exageros é a maneira como se lida com os dados sobre a realidade brasileira até hoje. Antes de mais nada, há uma confiança excessiva nas fontes. Institutos como Ipea, IBGE e INPE parecem infalíveis, mas cada vez mais não é isso que os fatos demonstram. O caso mais recente é o desmatamamento da Amazônia; o governo jurava que vinha desacelerando desde 2004, mas agora se sabe que não se pode ter tanta certeza assim. E não me esqueço do presidente Lula no documentário Entreatos conversando com o assessor sobre a impossibilidade de haver 30 milhões de desnutridos no Brasil. Mesmo pensando assim, usou esse número na campanha e já no governo ao lançar o Fome Zero. Na verdade, o Brasil tem poucas informações consistentes sobre o Brasil. Seu desdém pela memória histórica e pelo pensamento sistemático é parte do mal, não apenas sintoma. Veja a interpretação que se dá, por exemplo, a números positivos como os recentemente divulgados sobre queda da mortalidade infantil e do número de homicídios. ''''O Brasil está melhorando'''', exclama-se. Ok, mas em que ritmo? Será que é tão difícil assim avançar com mais rapidez e profundidade? Um país que tem 45 mil assassinatos por ano tem direito a orgulho? E um país que comemora dez anos do Código de Trânsito com mais de 35 mil mortes por acidente ao ano pode se lambuzar em ''''auto-estima''''? As datas e os dados, que nossas escolas obrigam os alunos a decorar sem entender, não permitem qualquer discurso. Um dos mais comuns dita que o Brasil, com seus 200 anos, é ''''um país jovem'''', que o futuro lhe será radioso - e Lula chegou a dizer que o século 21 será o ''''século brasileiro'''' como o século 20 foi o século americano. Aí vêm os antinacionalistas e, sem se dar conta de que sofrem o mesmo problema dos nacionalistas, dizem que o DNA do brasileiro é de preguiçoso, que ''''isto aqui nunca vai para a frente'''' porque lhe faltou uma revolução ou guerra civil, blá, blá, blá. Acho que nenhum dos dois lados está certo. O Brasil não é jovem, está lento; para acelerá-lo, não é preciso derramar sangue. Parar de mentir a si mesmo seria fundamental. RODAPÉ (1) Um livro interessante, relacionado em parte ao tema acima, é Arquitetura na Formação do Brasil, organizado por Briane e Paulo Bicca, com textos de oito autores, entre eles Hugo Segawa e Augusto da Silva Telles. É uma publicação da Unesco, que no próximo dia 13 promove em Porto Alegre uma grande conferência mundial sobre cidades. O livro mistura arquitetura e urbanismo com história e geografia; não é uma história convencional da arquitetura brasileira. A idéia é entender como a formação do país se refletiu na arquitetura de cada região e época, como no ciclo do açúcar no Nordeste e no ciclo do ouro em Minas. A arquitetura do açúcar no nordeste, do ouro em Minas, do gado no sul, do café em São Paulo, do algodão no Maranhão e da borracha na Amazônia são os capítulos que ocupam a maior parte do livro. A industrialização, que fica restrita apenas às 30 páginas finais, mereceria outro volume. RODAPÉ (2) Reedições continuam animando o mercado editorial brasileiro, e ainda bem. Encontrar em edição barata de bolso nas bancas Carpinteiros, Levantem bem alto a Cumeeira & Seymour, uma Apresentação (L&PM), de J.D. Salinger, é ótima notícia. A segunda história parte de uma epígrafe de Kafka e outra de Kierkegaard e parece fazer premonições sobre o afastamento a que Salinger se lançaria depois do sucesso de O Apanhador no Campo de Centeio. Há uma ironia e melancolia no estilo de Salinger, um realismo sugestivo, contidamente simbólico, que muito me atrai e cujo auge está nas Nove Histórias, comparáveis com Tchecov, Cheever e outros mestres do gênero. Outro evento é a reedição de A Cabra Vadia, de Nelson Rodrigues (Agir), coletânea de dois anos de crônicas publicadas em O Globo (1967-69). São suas ''''confissões'''', suas memórias. ''''Dizia eu que o teatro está morto, no Brasil. Morreu a partir do momento em que nos politizamos'''', escreveu, por exemplo, em 1968, ano que já está motivando ''''efemérides'''' por aí. Nelson era um conservador moral e político, um reacionário, como reconhecia; mas a dita esquerda contracultural não poderia ter tido adversário mais sincero, divertido e perspicaz. Que nem sempre podia dizer o mesmo dela... UMA LÁGRIMA Para Rubens Gerchman, um dos criadores da pop art brasileira, no início dos anos 70, ao lado de Wesley Duke Lee, Antonio Dias e outros. Ele se dava melhor nos trabalhos em que usava humor político ou em suas versões à la Andy Warhol de celebridades como Pelé. Mais tarde, sua pintura ficou óbvia e quase kitsch. Seu nome já estava estabelecido. POR QUE NÃO ME UFANO Que orgulho os ministros do governo Lula dão a seu povo! A ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, que dez entre dez brasileiros desconhecem, é a campeã de gastos com cartão de crédito. Com o dinheiro público, ela promoveu a igualdade racial fazendo muitas viagens, indo a restaurantes e passando em ''''free shops''''. O próximo passo é abrir uma ONG com Benedita da Silva? E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.