Darwin e Lincoln, lições sobre nosso tempo

Adam Gopnik traça paralelos entre a vida e a atuação do cientista e do político norte-americano, chegando aos dias atuais

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Por Caio Blinder
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Algumas coincidências são de morte. Para os americanos, uma das mais familiares é o fato de que dois "pais fundadores" da pátria morreram no mesmo dia. Mais incrível é que as mortes dos presidentes Thomas Jefferson e John Adams tenham ocorrido num 4 de julho, no exato cinquentenário da independência dos EUA. Já o elegante e perspicaz escritor e jornalista Adam Gopnik (revista The New Yorker) disseca num livro conciso, Angels and Ages: A Short Book about Darwin, Lincoln and Modern Life (Knopf), o que existe em comum entre Charles Darwin e Abraham Lincoln. Incrível: ambos nasceram, por uma diferença de horas, em lados diferentes do Atlântico, em 12 de fevereiro de 1809. O duplo bicentenário está gerando neste começo de 2009 uma pilha de livros sobre o naturalista britânico e o libertador dos escravos americanos. Mas colocar os dois em um mesmo processo de evolução exige certo malabarismo nos argumentos. Não é esforço novo. No centenário de nascimento da dupla, um escritor americano chamado William Thayer propôs um feriado binacional, transatlântico, para celebrar "Lincoln, a corporificação da devoção anglo-saxã à justiça, e Darwin, a encarnação da devoção anglo-saxã à verdade". Obviamente, evitando este tipo de triunfalismo étnico anglo-saxão e às vezes se perdendo nos paralelos (Lincoln era depressivo e Darwin, sujeito a ataques de ansiedade), Gopnik encontrou sua trilha. Felizmente não tomou o caminho bobo da revista Newsweek, que concluiu que Lincoln foi mais importante. Gopnik observa que o darwinismo poderia ter sido alcançado sem Darwin, assim como o Norte provavelmente teria vencido a Guerra Civil e a escravidão seria abolida sem Lincoln. Gopnik não está preocupado em fazer infantis competições históricas. Seu foco é o que Darwin e Lincoln "têm em comum conosco". "Eles não construíram o mundo moderno. Mas ajudaram a construir nossa modernidade moral." Então, vamos lá, começando pela explicação do título do livro, Angels and Ages. Ele resulta de um debate esotérico sobre o que teria dito o Secretário de Guerra Edwin Santon momentos após o assassinato de Lincoln em 1865. É um mistério fonético. Na primeira versão, Stanton teria dito: "Now he belongs to the ages" ("agora, ele pertence à história"). Na segunda versão: "Now he belongs to the angels" ("agora, Lincoln foi para o céu"). Esta obscura dúvida leva a uma profunda discussão da relação entre fé e ciência. O que interessa a Gopnik é que Darwin e Lincoln abraçaram uma austera oratória. Eles compartilhavam o rigor no escrutínio e no autoescrutínio. Ironicamente, ambos eram contidos, mas "tinham em comum a lógica como uma forma de eloquência, argumento como um estilo de virtude e rigoroso raciocínio como uma forma de elevação". Tudo isto com espírito agnóstico. Gopnik arremata que Darwin e Lincoln importam muito porque eles escreviam tão bem. A eloquência de Lincoln era pública. Afinal, ele chegou à presidência graças a um punhado de discursos antológicos. E é reverenciado por outros que pronunciou como presidente (em Gettysburg, foram apenas 272 densas palavras, pronunciadas em dois minutos). Já, segundo Gopnik, "Darwin era um escritor entre cientistas e um cientista entre escritores". A Origem das Espécies é provavelmente o único livro que mudou a ciência a ser lido com prazer por um leigo. Apesar da influência histórica e da inspiração, havia contenção e ceticismo em Darwin e Lincoln. Trata-se não apenas do poder da linguagem, mas da linguagem do liberalismo moderno. Retórica pode ser demagógica e anti-iluminista (Hitler, no exemplo mais evidente), mas Darwin e Lincoln a colocaram a serviço do progresso humano. Ambos sabiam traduzir argumentos complicados (da biologia e do legalês) e transmiti-los com clareza. Com sua própria dose de eloquência, Gopnik diz que Darwin e Lincoln foram pilares de duas fundações da sociedade moderna: o raciocínio lógico e a política democrática. Lincoln e Darwin são presentes. O ex-presidente americano fascina tanto que somente Jesus e Napoleão foram mais biografados, enquanto o naturalista inglês é o farol que sempre ilumina contra o obscurantismo religioso. No bicentenário, feliz aniversário.

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