Da dança à luta: a história da arte que veio da África

João das Neves dirige oito atores negros no musical Besouro Cordão-de-Ouro, que narra o nascimento da potente capoeira

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Por Beth Néspoli
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Apresentado no Festival de Teatro de Curitiba, ano passado, o musical Besouro Cordão-de-Ouro deixou o público siderado. Até duas senhoras desavisadas, que baixinho comentavam seu estranhamento no início, acabaram tomadas pela beleza das canções e pela força das interpretações - silenciaram. Ao final, aplaudiam calorosamente, emocionadas, surpresas. E não era para menos. Dirigido por João das Neves, com texto do compositor, e poeta, Paulo César Pinheiro, autor de dez canções inéditas para a peça, oito atores talentosos e afinados, todos negros, e uma ambientação cenográfica, de Ney Madeira, que leva o espectador para ''''dentro'''' da história, trata-se de um espetáculo original e envolvente, de qualidade ímpar. Depois de ter cumprido temporada no Rio - onde está indicado ao Prêmios Shell de direção, música e cenário - e passado por cidades como Brasília, Fortaleza e Belo Horizonte, estréia amanhã no Sesc Pompéia. Besouro é o apelido de Manuel Henrique Pereira (1897 -1924), considerado o maior capoeirista de todos os tempos. Mas ao contrário de tantos outros musicais biográficos, esse passa ao largo daquela estrutura cronológica focada na vida pessoal do protagonista. Ainda que possamos acompanhar os passos dessa figura de impressionante dignidade, ao autor interessa sobretudo sua dimensão mítica. O espetáculo enfoca a luta pela afirmação da cultura africana em terras brasileiras, submetida, perseguida, mas tão potente que se recicla, miscigena, e mais do que resiste, floresce nesse atrito secular. Ao longo do musical, é possível perceber como a capoeira brota dos rituais religiosos, por exemplo, como variação da dança sagrada de um orixá. ''''Há muito do candomblé na capoeira, mas o caminho inverso, entre luta e ritual, também se deu'''', observa João das Neves. Há uma frase, na peça, que sintetiza essa transformação: ''''a capoeira foi concebida na África, mas nasceu no Brasil''''. Por meio das narrativas da tradição oral - retrabalhadas poeticamente por Paulo César Pinheiro - o espectador entra em sintonia lúdica não só a mitologia africana, mas também com apropriações já dela feita pela arte brasileira, como na história do reino de Aruanda e da luta do santo guerreiro São Jorge contra o dragão da maldade. Depois de se envolver numa cena curta fora da área de representação, o público acompanha o musical acomodado sobre almofadas colocadas em grandes cestos de vime em torno do círculo central de representação, mas os atores caminham por todo o ambiente. Pelas paredes, os mesmos versos cantados ou falados na peça. ''''É uma homenagem ao poeta Gentileza que escreve seus versos nos pilares de viadutos e muros no Rio.'''' Projeto acalentado, e preparado durante longo tempo por Paulo César Pinheiro (leia na página ao lado), esse musical certamente ganhou muito com a direção de João das Neves, convidado pelo compositor. Dá para perceber no espetáculo também uma síntese de facetas desse homem de teatro - música, contação de histórias e arte politizada -, nascido no Rio, autor da peça O Último Carro, que iniciou sua carreira na década de 60 dirigindo os famosos shows do Teatro Opinião. Serviço Besouro Cordão-de-Ouro. 90 min. Livre. Sesc Pompéia . Rua Clélia, 93, 3871-7700. 6.ª e sáb., 21h30; dom., 18h30. R$ 16

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