Da arte de criar bons amálgamas com elementos díspares

Assim fizeram Kiss Bill e Appris par Corps, duas montagens internacionais da reta inicial do Cena Contemporânea em Brasília

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Por Beth Néspoli e BRASÍLIA
Atualização:

Toma-se signos da dança, do teatro, da acrobacia e cria-se outra linguagem. Esse foi aspecto em destaque entre os espetáculos estrangeiros no primeiro fim de semana do Cena Contemporânea, o Festival Internacional de Teatro de Brasília, que começou quarta e termina no domingo. Na programação brasileira, montagens como a paulistana Rainha(s), a adaptação dirigida por Cibele Forjaz da peça Mary Stuart, de Schiller e Inveja dos Anjos, do Grupo Armazém, do Rio. É o festival cumprindo a importante função de fazer circular o que de melhor se cria no País. Há ciclo de encontros em que dialogam participantes do evento: artistas, estudantes e interessados em conhecer melhor o processo de criação dos espetáculos. Amanhã, por exemplo, o elenco argentino da peça La Noche Canta sus Canciones fala sobre o método de trabalho de seu prestigiado diretor Daniel Veronese.O citado amálgama, fruto da interação de diferentes elementos das artes cênicas, está na criação da montagem canadense Kiss Bill, integrada por um casal de atores - intérpretes de um cineasta e sua produtora atarefada - e cinco bailarinos de técnica impecável. O título faz referência ao filme Kill Bill, de Tarantino. Há momentos só de dança intercalados com diálogos do casal de atores calcados no mote do ''cineasta pressionado pela produtora a manter um estilo que deu certo''. Na primeira parte o grupo alcança intenso poder de comunicação ao se apropriar de clichês do cinema para recriá-los com brilho na linguagem da dança, às vezes com humor, como na cena em que cineasta e produtora ''se matam'' dezenas de vezes de diferentes formas. Mas não se reduz à chave satírica a ambição de Kiss Bill. Há uma morte de fundo, que o grupo quer colocar em relevo: o embotamento da sensibilidade, uma espécie de morte ''afetiva'' da dupla, robotizados a serviço do produto vendável. Paradoxalmente, e infelizmente, quando a ''ninfa'' substitui a ''ninja'', ou seja, quando entra em cena a força feminina, supostamente criadora, o espetáculo desanda, perde potência. Criticar a indústria cultural no seu campo é sempre arriscado. Ao primeiro mobilizar e depois entediar Kiss Bill provocou em Brasília efeito oposto ao desejado: o interesse ficou para a parte da violência. No outro extremo, o francês Appris par Corps prendeu a respiração do início ao fim e arrancou aplausos em cena aberta. Alexandre Fray e Fréderic Arsenault misturam elementos coreográficos e acrobáticos numa dança afetiva e viril, ora terna, ora violenta, em saltos perigosos e perfeitos na sua execução. Dançam quase todo o tempo em silêncio, a trilha, quando surge é incidental. A iluminação em toda a parte inicial é mantida no palco e na plateia, nada de efeitos pirotécnicos - tanto que os aplausos nos movimentos de alto risco foram cessando para só retornarem, intensos, ao fim. Isso porque, apesar do virtuosismo, Appris não é feito para mera exibição de técnica. Aqueles dois homens que se tocam sem pudor em partes esquecidas do corpo em movimentos surpreendentes expressam muito e sem palavras. E provocam no espectador a consciência de que vivemos num mundo de mentes cansadas e corpos mortos. Uma boa provocação. Uma montagem de Brasília, A Casa, dos Irmãos Guimarães, está entre as boas expectativas dessa última semana. A repórter viajou a convite do Cena Contemporânea

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