Cultura desbotada

Sinopse

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Por Daniel Piza
Atualização:

Antigamente havia uma noção razoavelmente disseminada de que ter "cultura geral" era importante, de que fazia parte dos requisitos da cidadania. Hoje, na suposta Era da Informação, é difícil imaginar compromisso mais fora de moda. Mesmo artistas, escritores e professores têm lacunas tremendas na formação cultural. Como se via na seção "Antologia pessoal" que este caderno mantinha, eles não leram muitos clássicos, dominam mal os conceitos filosóficos e científicos e se interessam pouco por história. Penso em diretores de cinema como Bergman e Fellini, no conhecimento amoroso que tinham de literatura, teatro, pintura e música, e comparo com os atuais, dos quais tenho conhecido alguns. A diferença de repertório é abissal e, mais importante, se manifesta nos filmes, hoje tão mais vazios. Ou então leio Assunto Encerrado, de Italo Calvino, livro de 1980 que acaba de sair aqui (Companhia das Letras), e não consigo escapar da pergunta: não se faz mais gente assim? Calvino conversa com o leitor de modo erudito e sedutor ao mesmo tempo, sobre os mais diversos assuntos, e sempre com algo próprio a dizer. Ele critica, por exemplo, os que não entenderam a lição de Flaubert, pois a tomaram por um exercício linguístico em vez da experiência vital, e diz que isso resultou em "romances desbotados, como a água da lavagem dos pratos, em que nada a gordura de sentimentos requentados". Como se vê, Calvino, que critica o formalismo de Barthes e o escapismo dos beatniks e elogia o cientista Galileu como um dos maiores prosadores da língua italiana, não é o pós-modernista que muitos de seus fãs querem nos fazer crer. Por sinal, gosto muito de sua ficção em O Visconde Partido ao Meio e As Cidades Invisíveis, embora ele mesmo confesse uma opção pelos personagens "sem introspecção"; mas o ensaísta de Seis Propostas para o Próximo Milênio e Por Que Ler os Clássicos merece ser mais lido do que nunca. São livros perfeitos para que se entenda que ter cultura não é acumular referências, e sim um processo orgânico no qual o prazer é fundamental, desde que não seja visto como mera reação emocional a estímulos de superfície. No Brasil é comum que pseudointelectuais torçam a vista para a palavra "prazer" aplicada a obras de arte e pensamento que eles julgam sacrossantas porque, na verdade, sua inteligência - ou de seus orientadores universitários - não as alcança. Inteligência, claro, também parece tão fora de moda quanto usar chapéus. Programas de TV e revistas falam o tempo todo em "tipos de inteligência" ou em "inteligência emocional", mas não conseguem disfarçar o sabor de vingança que sentem com esse desprestígio do raciocínio articulado, formado por leituras atentas. E desvincular inteligência e cultura é outra tática que só serve ao conservadorismo dos nossos tempos, ao consumismo sentimental que emana da mídia sem parar. Sim, há pessoas que leram muito e continuam burras, mas isso porque leem burramente... O difícil é querer que as pessoas realmente inteligentes não sejam curiosas por natureza, atraídas pelo conhecimento porque sabem que sem ele não há equipamento mental que se aprimore. Essa overdose audiovisual, adversária da concentração sem a qual não existe formação - e toda formação exige alto grau de autodidatismo -, é apenas uma das causas do crescente desbotamento cultural da humanidade. A visão do intelectual como um sujeito ou insensível ou desajeitado, ainda que muitos intelectuais a confirmem, tem outras motivações históricas. Pode reparar que nos filmes de ação, sobretudo americanos, os vilões são sempre mais "sofisticados" que os heróis; se estes triunfam, é porque têm bom coração. Em parte isso tem a ver com os estereótipos sobre o nazismo, que provocam a pergunta banal sobre "como alguém que escuta Schubert pode matar milhões de pessoas" (escutar Schubert não é atestado moral); mas, na verdade, os antecede, como na cultura rousseauniana que as Américas adotaram. Já passa da hora de entender que a aproximação a uma cultura mais voltairiana, "europeia" no melhor sentido (não dessa Europa deprimida e deprimente de Berlusconis e Sarkozys), faria bem ao mundo. Nesse extraordinário livro com os textos para a rádio BBC, Ouvintes Alemães (Zahar), Thomas Mann - outro exemplo de artista-intelectual em extinção - critica a mutilação da noção de Europa pelos nazistas: "Ela era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo ilimitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. ?Europa?, isso era um patamar, um padrão cultural." Mann demonstra ainda o que é cosmopolitismo ao criticar seu próprio país: "O nazismo é uma caricatura terrível de todas as fraquezas e loucuras da essência alemã, a ponto de corrermos o perigo de esquecer suas virtudes." Não existem povos eleitos. Aqui chegamos a outro motivo da desvalorização da "cultura geral": a campanha contra o tal eurocentrismo, contra a civilização ocidental que, com seus "machos brancos" ou seus recalques vitorianos, teria calado as demais - campanha que, ironicamente, começou nas academias da Europa. Mas o Renascimento e o Iluminismo, assim como a arte moderna, são criações europeias que evidentemente a distinguem de outras civilizações - como a islâmica ou a chinesa, que tinham estado à sua frente em séculos anteriores. Familiarizar-se com todas elas é o caminho, mas ele implica não renegar a importância cultural da história polifônica que vai de Dante a Picasso e de Galileu a Einstein. Há também a questão do trabalho cada vez mais especializado, que compartimenta os saberes em jargões e pretensões. Mas o melhor especialista é o que se beneficia do contato com outras áreas, e hoje felizmente se começa a ver que um olhar transversal ou multidisciplinar é indispensável. E uma cultura não vive apenas de especialistas. Basta lembrar jornalistas como Otto Lara Resende, Antonio Callado, Paulo Francis: todos liam muito sobre história e tinham a liberdade de se interessar por diversos temas. O grande inimigo, porém, é a noção de que vivemos num eterno presente, como se o reexame da tradição não fosse fundamental para as ideias e as artes. E tome uma "elite" cada vez mais antenada e cada vez mais inculta. INSTINTO DE ARTE Alguns bons livros sobre arte estão saindo no Brasil. Em A Caixa de Pandora (Companhia das Letras), o casal Erwin e Dora Panofsky estuda as transformações do mito ao longo da história. No início, por exemplo, a caixa era um vaso grande, e de lá de dentro ela tirava todas as virtudes e mazelas, e apenas a esperança ficava dependurada na borda. Com o tempo, a narrativa se tornou a que conhecemos (Pandora abriu uma caixa que continha os males e a esperança). A leitura de Panofsky sempre nos lembra que em arte não existe forma sem tema. Em O Artífice (Record), o ensaísta Richard Sennett teve uma ideia bastante original e discorre com agradável erudição sobre como o trabalho artesanal foi e é importante na organização mental, no autoconhecimento do homem, ainda que o progresso técnico tenha pintado tarefas manuais como um desdouro. Mas Sennett segue demais sua cartilha ideológica e quer nos convencer de que esse abandono é o responsável pela falta de ética no capitalismo global, etc., etc. Não são apenas os intelectuais brasileiros que têm mania de sociologia. O MUNDO É UM PALCO Foi divertido ver que tantos leitores acharam que Norma, "autora" do email da coluna passada, existe de verdade. Alguns até se queixaram da minha preguiça de reproduzir um texto alheio em vez de queimar meus miolos. Mas é mais trabalhoso ainda se colocar no lugar de uma mulher e escrever por ela... POR QUE NÃO ME UFANO (1) É um país curioso, esse onde o fato de que o PIB caiu "menos que o esperado pelos analistas" é motivo de comemoração. Analistas econômicos nunca foram bons de profecia. Tanto é verdade que o dado mais surpreendente do primeiro trimestre - já que a queda de 1,8% em relação ao mesmo período de 2009 ficou dentro da margem das previsões - foi o tombo de 12% nos investimentos. Embora o governo diga que examinar o resultado do PIB é "olhar no retrovisor", o dado dos investimentos diz muito sobre o futuro. A recuperação pode ser mais lenta do que o ministro Mantega alardeia e a médio prazo os problemas de sempre vão reaparecer, como a péssima infraestrutura que segue existindo apesar do aumento dos gastos do governo. De resto, Lula já ensinou: quando o PIB cresce, é porque o Brasil está "descolado" da economia mundial; quando cai, é porque tivemos de resistir aos erros dos "brancos de olhos azuis". Sua popularidade não tem recessão. POR QUE NÃO ME UFANO (2) As notícias da Podrebras continuam. Por exemplo: "Departamento de comunicação da Petrobras tem 1.150 empregados." E o blog da própria estatal confirma! Outro: "Neto de Sarney ganha R$ 7,6 mil do Congresso; senador diz que não sabia." Mas onde estão os manifestantes com as faixas "Fora, Sarney!"? Aforismos sem juízo Política é tudo menos realista. É composta de um quarto de catastrofismo e três quartos de otimismo. ''Desvincular inteligência e cultura é outra tática que serve ao conservadorismo dos nossos tempos'' Ter ?cultura geral? está fora de moda. E tome uma ?elite? cada vez mais antenada e cada vez mais inculta

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