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Cultura da insegurança

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Por Redação
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Um expatriado que vive em Nova York há quase 40 anos me confessou estar atormentado porque decidiu passar 2009 trabalhando na Europa. A decisão foi tomada no período A.S., antes do crash de setembro. O cidadão britânico havia sido aconselhado a ficar um ano fiscal longe do Leão americano para se desvencilhar de bens herdados de seus pais e permitir que outros herdeiros da família recebam o dinheiro da venda de alguns objetos de arte e um apartamento. Se morasse em Nova York durante a venda, o expatriado seria duplamente mordido pelo fisco, dos dois lados do Atlântico. Mas a recessão inglesa ameaça passar uma rasteira nos planos do expatriado, que pode não conseguir vender nada e tem saudades de seu canto em Manhattan. Ao encontrar Londres ainda mais cinzenta com o noticiário da crise, o meu amigo telefonou para dizer que havia cometido um grande erro. Imaginei o que se passava na cabeça de uma pessoa com memórias da infância na 2ª Guerra - sirenes, longa separação forçada do pai judeu e da mãe católica, anos de racionamento de comida. Tenho outra amiga que sobreviveu ainda menina aos bombardeios na Itália. As geladeiras de ambos são de dar dó. Eles vivem vidas confortáveis, mas a memória da guerra é tão forte que nada pode ser jogado fora. Já temi ser envenenada na casa deles por pedaços de queijos que evocam o governo Reagan, salame que seria apropriadamente consumido na noite em que Jane Fonda ganhou seu primeiro Oscar, por Klute - O Passado Condena (o segundo foi por Amargo Regresso, em 1978). Mas, ao receber o telefonema de Londres, reagi com um comentário que me surpreendeu. Disse que o meu amigo tinha escolhido o momento ideal para se afastar dos Estados Unidos e, se tivesse sido aquinhoada com alguma herança, também me afastaria daqui por um ano. Uma coisa é testemunhar amigos perdendo emprego na Inglaterra, na França ou na Alemanha, países onde há uma cultura de benefício social compartilhado. Outra, bem diferente, é encontrar o olhar assustado de um americano em situação semelhante. A resignação do americano com a falta da rede social de proteção enraizou-se na cultura de tal forma, que quando o governo Bush lançou a ofensiva, felizmente fracassada, de privatizar a Previdência, ninguém saiu à rua. Não detectei na mídia o grau de indignação proporcional ao desatino que teria sido atracar a aposentadoria de dezenas de milhões de pessoas a ações que hoje valem 40 centavos de dólar. Escrevo na manhã em que os olhos do país estão voltados para o grupo de mortais reunidos na Casa Branca para enfrentar uma tarefa hercúlea: desatar o nó do seguro-saúde, ou melhor, da impossibilidade de se ter seguro-saúde nesta potência ocidental. A cada 30 segundos, um americano declara falência por causa do custo de um tratamento médico. De acordo com um novo estudo, 86 milhões de pessoas vivem aqui na corda bamba da exclusão do acesso regular à assistência médica. Quando a bolsa de Wall Street despencou abaixo de 7 mil pontos, alguns sábios de plantão disseram que Barack Obama devia abrir mão de tratar de tantos problemas e pensar num só - a economia. "Para que reunir a força-tarefa da saúde, neste momento?", perguntou um talking head geralmente ponderado. O próprio Obama poderia ter respondido: porque o mastodonte da saúde responde por um sexto da economia americana. A ganância das seguradoras e da indústria farmacêutica, fartamente tolerada quando não estimulada pelo Legislativo, corrói os salários dos trabalhadores, já que o custo do seguro-saúde aumenta em proporção geométrica. Porque, enquanto outros países desenvolvidos podem investir em educação e treinamento da força de trabalho do futuro, os Estados Unidos vão tomar dinheiro emprestado da China para comprar gaze e antibiótico. "Somos Todos Socialistas Agora", bradou a revista Newsweek, numa capa recente sobre a nova cara da economia, e notou que os americanos vão ficar mais parecidos com os franceses. Sacre bleu! Ideologia é um luxo para quem tem a próxima refeição garantida. A timidez da mídia, que teme ser acusada de esquerdista, paralisa discussões mais básicas sobre porte de arma, acesso à saúde e educação. Eu tenho liberdade para levar um tiro do meu vizinho que comprou uma arma, apesar do passado de doença mental. Mas não tenho direito de requerer tratamento médico de qualidade por menos de mil dólares mensais de despesa com seguro-saúde. Com a experiência de quem já frequentou corredores de emergências nova-iorquinas, aviso: se tiver de fazer uma cirurgia eletiva, prefiro entrar na faca no melhor hospital de São Paulo do que em qualquer dos prestigiados hospitais de Manhattan - inclusive a potência de medicina oncológica onde foi operado o lado errado do cérebro da mãe de uma estrela internacional. Barack Obama pode estar sendo ousado ao abrir tantas frentes num momento tão dramático. Independentemente do sucesso que ele tiver nas medidas de combate à recessão, o futuro poderá lhe dar o crédito por ter lembrado os americanos da diferença entre direito e privilégio.

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