Crônica febril de uma guerra esquecida

PUBLICIDADE

Por Milton Hatoum
Atualização:

Não sei se foi a gripe suína, quem sabe a bovina ou mesmo a equina, o fato é que acordei meio leso, com o corpo moído, e fiquei ouvindo o ruído monótono da chuva nesta manhã campestre. Depois senti calafrio; não encontrei o termômetro e, resignado, imaginei uma temperatura não muito alta. O resto é tremedeira e desejo de me encasular neste domingo que mal começou, ou começou mal. Agora que o calafrio parece uma coisa horrível e convulsiva, me lembro das tremedeiras do meu pai, coitado, ele deitava na rede, o corpo encasulado tremia, e a voz da criança (minha voz) perguntava para minha mãe o que estava acontecendo com o pai e ela dizia malária, filho. Então soube que meu pai contraíra malária quando viveu no Acre em 1939, navegando por rios de águas barrentas, vendendo tudo para seringueiros e ribeirinhos, ou trocando borracha por pano, café e açúcar, repetindo o que meu avô fizera na mesma região em janeiro de 1903, quando parou de regatear no Rio Acre e se uniu aos seringueiros-soldados comandados pelo gaúcho Plácido de Castro e combateu contra os bolivianos durante uma guerra quase esquecida. Vi a fotografia borrada do meu avô, o bigode que escondia a boca, o nariz tão grande que talvez desequilibrasse o corpo, o olhar assustado de combatente improvisado, um combatente que ainda nem falava português, e as palavras formando um arco na parte superior da foto: O Acre é nosso. No mesmo álbum vi o rosto de outros soldados, quase todos nordestinos, alguns pareciam ter ressuscitado depois do massacre de Canudos, sertanejos paupérrimos que haviam fugido da seca e da miséria e agora elegiam sua nova pátria naqueles confins da Amazônia. Com febre alta a memória se anima. Lembro a voz do meu pai narrando episódios de guerra que ele ouvira do meu avô: o assalto e a tomada de Puerto Alonso, os soldados que saltavam dos barcos e mergulhavam no rio e depois subiam o barranco como loucos, a retirada dos bolivianos, os tiroteios noturnos no meio da floresta, onde os combatentes comiam carne de macaco, comiam até cérebro e olhos de macaco. Eram tantas façanhas que eu pensei: meu pai exagera, ou meu avô era um fabulador de primeira. Mas não. A conquista do Acre foi assim mesmo, disse meu pai. Ele me mostrou alguns objetos que meu avô lhe dera: cinco cápsulas de uma Winchester, o uniforme de combate com um rasgo na ombreira, uma bandeirinha com o símbolo do novo território nacional, o brasão da república bordado num pedaço de brim, objetos que ganhei do meu pai depois de um de seus surtos de malária, uma das recaídas que mais me impressionaram porque eu pensei que ele ia morrer de tanta tremedeira. Mas isso é o de menos, ele disse, tremendo na rede. Teu avô pegou malária sete vezes. Quando contraiu tifo, pensou que ia enlouquecer, porque sonhava com combates ferozes na floresta, com homens degolados por golpes de terçado, com urros de guaribas nas noites de trevas. Uma tarde ele sonhou que subia uma montanha próxima de Beirute; na mesma tarde sonhou que Beirute inteira estava dentro dele. Quando acordou, estava deitado numa maca, no corredor de um ambulatório improvisado de Beirute. Só que Beirute era um bairro de Rio Branco onde viviam dezenas de famílias sírias e libanesas. Noite de febre alta. Alguém me adverte que pode ser a gripe suína. Nenhum analgésico por aqui. A farmácia mais próxima está a 12 quilômetros daqui. Lembro de minha avó e tomo um chá de alho com limão. O chá milagroso, sabor de purgante. Um riacho de suor quente nasce na minha testa e escorre por todo o corpo. Cabeça pesada, mal consigo segurar a caneta. Melhor deixar a mão começar sozinha esta crônica febril, movida pela memória dos que já se foram.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.