Costumes das tribos literárias

Sobre que conversam escritores? Poesia, idiomas, traduções... e, claro, dinheiro

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Por Jorge Edwards e EL PAÍS
Atualização:

José Donoso escreveu sobre as memórias de sua tribo, com um título que se referia a dois setores da vida do escritor: a família e a tribo literária. Suas memórias devem ser lidas. Recomendo o tema porque passei recentemente o feriado do dia de Ação de Graças - tão importante nos EUA e repleto de antigos rituais e tradições - na companhia de um grupo de historiadores e professores de literatura. Descobri que os historiadores, no caso dois mexicanos e um americano de origem cubana, têm uma curiosidade não apenas histórica pela associação de escritores, ou seja, pela tribo literária, com seus costumes, suas manias e seus segredos. A conversa começou porque alguém contou que havia participado de uma reunião de poetas e romancistas em que o tema principal foi o dinheiro. A literatura, os livros, as discussões críticas e teóricas brilharam pela ausência. Perguntaram-me o que eu achava sobre isso e dei uma resposta talvez demasiado esquemática. Nos anos em que não havia dinheiro na literatura, falávamos sempre de literatura, de poesia clássica e contemporânea, do romance francês do século 19, dos romancistas russos, e falávamos até o cansaço, até o amanhecer no café Bosco e no café Iris. Parecia que todos nós escritores éramos leitores compulsivos, onívoros, universais. Além disso, os autores principiantes, os aspirantes e os apaixonados pela leitura de toda espécie, liam seus trabalhos. Se um de nós conseguisse a aprovação de três ou quatro amigos, sentia uma emoção parecida com a de um vencedor do Prêmio Nobel. Agora, já existe algum dinheiro na literatura. Não muito, não tanto como a maioria das pessoas imagina. O resultado, em todo caso, é que, quando se reúnem, os escritores falam muito de dinheiro, de contratos com os editores, de cifras de vendas, de impostos vários, e, de livros, falam muito menos do que em épocas passadas. E houve outro ponto que despertou também o interesse dos meus interlocutores. Eles mencionaram escritores, historiadores, ensaístas que se propõem a escrever em um segundo idioma. Referiam-se principalmente a pessoas de língua espanhola ou portuguesa que tentam, aqui nos EUA, por necessidades óbvias de difusão e de promoção, escrever em inglês. Houve alguns casos clássicos: na primeira linha, o de Joseph Conrad, cujo nome verdadeiro, na Polônia do século 19, era Konrad Korzeniowsky. Eles afirmaram que Fernando Pessoa, o grande poeta português, uma das maiores vozes da poesia moderna, foi outro exemplo de bilinguismo. Pessoa foi educado em Durban, na África do Sul, e seus escritos da adolescência foram sonetos ingleses. Mas eu acredito que, em determinadas circunstâncias, é possível mudar de uma língua para outra. O que é muito difícil, entretanto, e talvez impossível, é chegar a escrever simultaneamente em duas línguas. Jules Supervielle é um grande poeta francês que nasceu no Uruguai, onde começou sua formação. Nos anos 60, conheci em Paris um dos seus filhos, Jean, casado com uma chilena. Jean me descreveu os esforços deliberados, constantes, incansáveis do seu pai, o autor de La Desconocida del Sena, para afastar-se do espanhol do começo de sua carreira e aprofundar seu domínio da língua francesa. Por exemplo, ele proibia os filhos, meio uruguaios, de utilizar outro idioma que não fosse o francês - ou seja, uma pessoa pode mudar de uma língua para outra, mas com a condição de ir fundo, de mergulhar nos mares e nas correntes subterrâneas da outra língua e da outra cultura. Dirão que usar dois idiomas ao mesmo tempo é paralisante, neurotizante. Para citar meu testemunho pessoal, confesso que tenho um prazer muito grande em ler os romancistas da Inglaterra, da França, de Portugal e do Brasil em suas versões originais, mas, de vez em quando, preciso voltar a Cervantes, a Baltasar Gracián, Clarín, don Luís de Góngora ou San Juan de la Cruz. Alguns acreditam que não se pode pensar em espanhol tão bem quanto se pensa em alemão ou como se pensava em grego clássico, mas não concordo. Pode-se pensar, sim, em espanhol, em inglês, em italiano e em muitas outras línguas. Se pensamos mal, não é por culpa da língua espanhola, mas, atrevo-me a dizer, apesar dela. Outro escritor que brilhou foi Vladimir Nabokov, um russo que fugiu da Revolução de Outubro e acabou destacando-se na literatura inglesa. Mas Nabokov é mais uma prova a favor da minha tese. O pai de Nabokov era um grande burguês liberal que ingressou na política do seu tempo, mal visto pelos czares por suas ideias modernas, mais tarde exilado pelos bolcheviques. O jovem Nabokov, que havia recebido uma educação bastante favorável à Inglaterra, viveu em Londres na época do exílio e se arranjou como pôde. Finalmente, encontrou trabalho como professor em universidades americanas e terminou escrevendo em inglês, por necessidade, por prazer, por predileção pela língua inglesa. Em resumo, não foi exatamente bilíngue. Escreveu em russo na primeira fase da sua vida e depois mudou totalmente para a língua inglesa. Não sei se seu domínio deste idioma chegou a ser comparável ao de Conrad, que havia fugido da Polônia muito jovem e por razões no fundo parecidas com as que impeliram o autor de Lolita: para escapar dos tentáculos asfixiantes do império russo. A conversa com os professores de história e suas esposas, professoras de literatura, prolongou-se até o início da noite e teria durado mais se eu não tivesse de comparecer a outra festa do dia de Ação de Graças. Falamos, por exemplo, dos poetas malditos. É possível ser um poeta maldito durante toda a vida? Acredito que não: os malditos são obrigados a morrer jovens, ou a mudar. Rimbaud abandonou a poesia e dedicou-se ao tráfico, segundo as más línguas, até mesmo de escravos, no norte da África. Neruda foi um poeta maldito e, depois, quando compreendeu que esta atitude humana não tinha mais sentido, renegou tornou-se um poeta épico e comprometido. E Huidobro? Foi um poeta formidável, mas nunca um maldito. Sempre desfrutou da proteção das remessas de dinheiro de sua mãe e da sua família. Não existem malditos bem financiados. "Estas metafísico", podemos dizer a um maldito, e ele talvez responda como Rocinante: "É que não como". O escritor chileno Jorge Edwards é autor de Los Convidados de Piedra e Faustino, entre outros

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