PUBLICIDADE

Corrida de fãs para ver Les Paul

Aos 93 anos, recém-completados, inventor da guitarra elétrica faz shows às segundas, em Nova York

Por Ed Pilkington e Nova York
Atualização:

Sem Les Paul, é possível que jamais tivéssemos visto a guitarra elétrica - e aos 93 anos, recém-completados, ele ainda está em busca de nova sonoridade. Só poderia acontecer em Nova York. Em que outro lugar do mundo as pessoas fariam uma fila de dobrar o quarteirão para entrar numa maltrapilha casa de espetáculos de jazz, e assistir à apresentação do sujeito lembrado por ter inventado o esfregão musical, e cujos dedos estão afetados pela artrite a tal ponto que mal conseguem se mover, e que ainda faz seus shows toda noite de segunda-feira com essa idade? Mas, pensando bem, o espetáculo semanal de Les Paul no Iridium Club, um estabelecimento instalado num porão da Broadway que parece ter sido congelado em algum momento da década de 1950, é mais do que uma apresentação. Trata-se de uma peregrinação, em que fãs da música americana do século 20 e amantes da guitarra elétrica - Paul McCartney, Jeff Beck e Keith Richards, entre outros - vêm prestar homenagem ao grande homem. Richards resumiu de maneira direta a aura que cerca o sujeito quando disse: ''Todos nós somos obrigados a admitir que, se não fosse por Les Paul, gerações de pequenos vagabundos metidos a bacanas estariam na cadeia ou então limpando privadas.'' Como o seu colaborador mais próximo, Leo Fender, Les Paul é conhecido pela guitarra elétrica que inventou. Se a Fender Stratocaster é o afiado burro de carga da indústria do rock, a Gibson Les Paul era e continua sendo a sua elegante rival, com o seu corpo de mogno envernizado e o braço com trastos de madrepérola acrescentando um toque de classe a um artigo esculpido grosseiramente. Mas há muito mais a respeito de Paul, além de um naco de madeira com acabamento chique: ele é também um músico realizado que, apesar da artrite que o obriga a usar apenas dois dedos, ainda é capaz de acender uma chama em músicos muito mais jovens. Na noite em que fui à apresentação, Paul recebeu a guitarrista Joan Jett, que parecia um coelho assustado ao subir no palco. Mas Paul rapidamente a fez relaxar, brincando quando ela tocou um tema de blues: ''Isso aí é de uma época um pouco anterior à minha.'' A graça é que a época de Les Paul equivale a praticamente qualquer década depois de 1920. Conforme revela um novo documentário sobre a sua vida, Chasing Sound: The Les Paul Story - que deve ser lançado em DVD, em setembro, pela Eagle Rock Entertainment -, a vida do homem é nada mais nada menos do que a história da música americana moderna, desde o caipira da sua infância, passando pelo country e pelo jazz, até chegar à era das transmissões de rádio e televisão. A característica única de Paul está no fato de ele ser a um só tempo um músico brilhante e um engenheiro de som igualmente genial. (Atualmente, ele busca inventar o mais perfeito aparelho contra surdez.) Aos 8 anos, ele descobriu a música depois que ganhou uma gaita de um limpador de fossas na sua cidade natal, Waukesha, em Wisconsin. Ele começou a cantar, e depois acrescentou um violão. Esse espetáculo caipira se tornou popular entre amigos da escola e professores, e isso fez nascer uma curiosidade quanto ao desenvolvimento de novas maneiras de amplificar o som para contemplar uma platéia maior. ''Desde o início as duas coisas - a música e a reprodução do som - sempre estiveram no mesmo patamar'', ele me diz durante conversa nos bastidores do Iridium. ''Minha mãe costumava dizer, ''Lester, isso é muito bom, muito comercial.'' E eu dizia: ''Mas, mãe, eu nem consigo ouvir com clareza aquilo que estou tocando - eu teria de estar sentado onde você está para poder fazê-lo.'''' Quando tinha cerca de 13 anos, ele tocou num churrasco nos arredores de Milwaukee. Naquela época, já havia descoberto uma forma de improvisar um microfone, ligando o telefone de sua mãe aos falantes do rádio da família. ''Todos adoraram. Com exceção de um sujeito no fundo da platéia que me escreveu para dizer: ''Ruivo, sua voz e as suas piadas e a sua cantoria foram boas, mas o violão não estava alto o bastante.'''' Aquele foi o início da busca pela amplificação perfeita. As primeiras experiências envolveram a instalação da agulha da vitrola da família sob as cordas do violão. Também preencheu o corpo oco do violão com lençóis e retalhos, e depois gesso de Paris, na tentativa de abafar o retorno, mas foi tudo em vão. Mas fez grande progresso quando experimentou o material mais denso que foi capaz de encontrar, um pedaço de trilho de trem, ligando-o a uma corda de violão e a um receptor telefônico conectado a um rádio. ''O som ficou ótimo! Corri até minha mãe e gritei ''encontrei a resposta!'' E ela respondeu: ''Você já viu um caubói montado no cavalo tocando um trilho de trem?'' E então isso praticamente inviabilizou minha idéia.'' Foram muitos anos a mais de experimentos até que ele construísse sua primeira guitarra de madeira sólida, em 1941; ele teve de esperar outros 10 anos até que a Gibson finalmente aceitasse a idéia, em 1951. ''Eles riram da guitarra elétrica! Eles me chamavam de personagem com o esfregão cheio de captadores. Foi terrível. Antes de nós, o guitarrista era um fracote apologético - o sujeito mais fraco e desimportante numa banda. Assim que o munimos de captadores, e de um controle de volume, ele se tornou o rei.'' Enquanto isso, a carreira de Paul como músico estava passando por períodos semelhantes de avanço e estagnação. Ele tocou com os maiores de sua geração: Bing Crosby, as Andrews Sisters, e foi um dos poucos músicos brancos a ser aceito no jazz negro, tocando com Art Tatum, Nat King Cole e B.B. King. Nada mal para um homem que nunca conseguiu ler uma partitura. Com a esposa Mary Ford ele criou uma dupla lendária, produzindo os sucessos How High the Moon e The World is Waiting for the Sunrise. Ele desenvolveu uma técnica ágil de virtuosismo, não muito diferente daquela usada pelo guitarrista de jazz Django Reinhart - mas quando seu estilo foi copiado por outros, ele saiu em busca de sonoridades novas. Foi o pioneiro na gravação em pistas múltiplas, sobrepondo vozes diferentes para criar o que ele chamou, apropriadamente, de Novo Som. Como a sua guitarra, essa descoberta inicialmente despertou expressões indiferentes. ''Sempre há pessoas que resistem às mudanças, que estão acostumadas a um certo modo de fazer as coisas'', disse ele. ''Hoje é a mesma coisa. Sabemos que vamos descobrir música nova e melhor. Não ficaríamos felizes se tivéssemos de voltar a Bing Crosby ou Les Paul ou Mary Ford ou seja quem for. Não há nada de errado com esses nomes, mas são do passado. Há um novo tipo de música, e ele está chegando.'' TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.