Corajosa tentativa de conhecer o País

É reeditada a Coleção Brasiliana, formada, entre outros, por A Corte de Portugal no Brasil, que destaca governo de d. João VI

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Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

Num país pouco afeito a celebrar ou preservar sua memória, é motivo para festa a notícia do retorno, pela mesma Companhia Editora Nacional, da famosa Coleção Brasiliana. Criada em 1931, a coleção não se resumia a um projeto editorial inovador. Correspondia a uma verdadeira política de nacionalização da cultural; uma corajosa tentativa de produzir conhecimento mais sistemático sobre o Brasil. A própria editora, fundada em 1926, vinha notabilizando-se com coleções destinadas a públicos variados - Biblioteca das Moças, Biblioteca Pedagógica, Coleção Terramarear -, e dentre elas surgia a Brasiliana; a vedete da editora. Fernando de Azevedo, que dirigiria a coleção até 1946, lançara o projeto no mesmo contexto da criação do Novo Ministério de Educação, e pretendia, com o empreendimento, lograr uma nova articulação entre Estado, intelectuais e movimento editorial. Não por coincidência, o título que inaugurou a coleção foi o de Hans Staden: Meu Cativeiro entre os Selvagens do Brasil. A ideia era buscar as primeiras imagens do Brasil, e constituir um acervo inédito de intérpretes e modelos. A Brasiliana lançaria volumes em diferentes áreas - Arqueologia, Botânica, Zoologia, Antropologia, Demografia, Direito, Medicina, Política, Educação, Economia, Geografia, Viagens e História - e introduziria autores já conhecidos do público, e outros que viriam a ser, a partir da participação no prestigioso projeto. Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Roquete Pinto, Tavares Bastos, Gilberto Freyre, Louis Agassiz, Spix e Martius são apenas alguns nomes, dentre um leque de pensadores que representavam perspectivas e inserções distintas. Era preciso saber mais sobre nós mesmos, e jamais um projeto editorial ganhou tal centralidade e envergadura. E é esse grande esforço editorial que volta a estar disponível ao público brasileiro. Disputada a tapa por aqueles que têm acesso privilegiado aos sebos; motivo para demonstração de vaidade ou até de separação litigiosa, a Brasiliana sai agora, aos poucos, misturando reimpressões com alguns inéditos. Cartas Luso-Brasileiras (272 págs., R$ 34) traz a longa e sensível correspondência trocada entre as famílias Garcez e Pinto da França; divididas pelo Oceano e pelas vicissitudes da política. As cartas apresentam um painel vivo do Brasil joanino (de um lado) e de um Portugal sem rei (de outro). Cartas Baianas (240 págs., R$ 34), publicadas pela primeira vez em 1980, apresenta a correspondência passiva de Luis Paulino Pinto da França, representante da Bahia junto às Cortes portuguesas de 1821. Mas a grande publicação é A Corte de Portugal do Brasil, do diplomata Luís Norton. Editada pela primeira vez em 1938, como o volume 124 da coleção, a obra transformou-se em leitura obrigatória para todo aquele que pretende entender o período. Se o livro de Oliveira Lima, d. João VI no Brasil, editado por ocasião do centenário da chegada da Corte, foi sempre considerado o primeiro grande estudo sobre o período, já o texto de Norton ganhou, consensualmente, um segundo honroso lugar. A obra não se limita, porém, ao momento joanino; avança até o Primeiro Reinado, apresentando esboços de personagens, análises fragmentadas de eventos e alguns documentos de época. Seu destaque à história diplomática é claro, e não lhe escapam as razões de Estado. No entanto, o autor é também mestre nas descrições saborosas e divertidas. Como diz o historiador Arno Welling, em ótimo prefácio para a nova edição, a narrativa elaborada não impede o exercício do humor. No capítulo sobre a Aclamação de d. João, por exemplo, desconfiado da retórica rococó de uma das suas fontes prediletas, o padre Perereca (Luís Gonçalves dos Santos) - que compara d. João a um querubim "cheio de sabedoria e perfeito em beleza" -, Norton não resiste: "Chamar d. João de querubim é da exclusiva responsabilidade do padre, panegirista exímio." Partícipe de um tempo em que se praticava um modelo de história positiva, que exaltava os governantes, o autor está sempre pronto a recuperar a importância de d. João, ou mesmo de seus filhos. Porém, no caso de d. Pedro, se destaca o caráter correto, abnegado e romântico do príncipe, não se controla ao descrever os assassinatos na gramática que cometia: "Apesar das suas múltiplas faculdades que possuía, a sua prosa escrita com expressões de iletrado era revessa a qualquer disciplina gramatical e ortográfica." Segundo o autor, a educação de d. Pedro I seria feita "quase ao furto", e não por acaso d. João recomendara ao filho: "Quando escreveres lembra-te que és um príncipe e que deves ter cautela não só no que dizes, mas também no modo de te explicares." O diplomata narra detalhes da vinda de d. João, sua volta, assim como esmiúça a difícil vida sentimental de Leopoldina, ou a partida de d. Pedro; esse "cavaleiro andante entre duas pátrias". Interessa-se por José Bonifácio, e enaltece suas atitudes como americanista, anteriores à doutrina Monroe. Acerca dos três ministros do príncipe português, prefere reproduzir a crítica de Hipólito da Costa, editor do Correio Braziliense, que os comparava a três relógios: um atrasado (d. Fernando Portugal); outro parado (visconde de Anadia); outro sempre adiantado (d. Rodrigo de Sousa Coutinho). Mas o capítulo de fato imperdível é o que trata da cidade, dos costumes e das artes no Rio de Janeiro de d. João. É aí que a pena comportada se faz afiada, e Norton se dá ao direito de falar das "imundices" da cidade, dos pântanos que tornavam as ruas fétidas, das "ociosidades próprias do clima tropical", ou da mania das senhoras de exibirem "enorme profusão de joias". Nada escapa ao olhar impiedoso do analista: a arquitetura "feia" das casas ou a falta de móveis surge contraposta aos excessos gastronômicos. Em ano de celebração de Darwin, nesse livro vemos o ainda jovem biólogo às voltas com uma refeição pantagruelesca: "Num dia fazia os cálculos mais sábios para conseguir provar de tudo e pensava sair vitorioso da prova quando, com profundo terror, vi chegar um peru e um porco assado." Norton, também não deixa de caçoar "do serviço especializado de caça aos parasitas da cabeça", para o qual se ofereciam macacos amestrados que realizavam um "despiolhamento perfeito". É fato que o tempo e as pesquisas recentes tratariam de abrandar as visões mais dicotômicas do autor, que opunha dirigentes políticos de moral ilibada, a populações de costumes preguiçosos e pouco recomendáveis. Hoje se sabe, também, como até mesmo as metrópoles europeias eram pouco iluminadas e sujas, já que poucas contavam com sistemas de esgoto confiáveis. Por outro lado, não se desconhece como a Corte se tropicalizou, enquanto os trópicos portugueses nunca se mostraram tão europeus. Mas a obra de Luís Norton é documento da maior importância por conta do rigor no uso das fontes, por seu estilo preciso e seu humor refinado. Fechamos o livro com d. Pedro partindo para Portugal, "convencido de que chegara a hora de ser apenas português". Diz o autor que o Imperador abandonava para sempre o Novo Mundo e conclui: "Havia terminado a sua missão americana". Mal sabia Luís Norton que a sua, com esse livro, apenas começava. Lilia Moritz Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP, é autora, entre outros, de O Sol do Brasil (Companhia das Letras)

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