Conversa de onças e mitos indígenas

Estudioso sério, Alberto Mussa analisa o imaginário desses povos e põe no papel tradição oral cultivada há muitas gerações

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Por Betty Mindlin
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Debruçado sobre a mitologia indígena, um dos melhores escritores brasileiros atuais relê os primeiros cronistas do século 16, como André Thevet, Jean de Léry, Yves D?Evreux, Claude D?Abbeville, Anchieta, Nóbrega e outros. O núcleo do livro de Alberto Mussa, Meu Destino É Ser Onça (Record, 2009, 272 págs., R$ 39), é a sua escrita de um grande mito de criação do universo e da humanidade. A versão de André Thevet na Cosmografia Universal é uma das suas principais fontes - mas ele analisa outros viajantes e missionários, procurando adivinhar um conteúdo completo da epopeia indígena, obra de criação artística oral equivalente aos grandes clássicos da literatura mundial. Não se trata, assim, de uma obra de ficção inspirada nos mitos, como fez Darcy Ribeiro em Maíra, ou Mário de Andrade em Macunaíma. Mussa compôs uma forma do mito, depois de analisar criteriosamente, com vestes de estudioso sério, os primeiros registros dos europeus sobre o que entenderam da densa tradição oral dos tupinambás e de outros povos que falavam línguas da família tupi-guarani. Missionários e viajantes escreviam no próprio estilo literário, muito influenciados pelo cristianismo e pela Bíblia, com compreensão apenas parcial da língua e do modo de vida indígenas, mas mesmo assim, foi tão forte o contato deles com povos diferentes, que conseguem nos transmitir uma cosmologia intrigante, trazem à luz verdadeiros tesouros do que a mente humana é capaz de conceber como explicação da existência. Ficcionista de mão cheia, autor de livros com cenários diversos, como o Brasil colonial, as raízes africanas, a tradição árabe (Elegbara, O Enigma de Skaf, O Trono da Rainha Ginga, Movimento Pendular), tradutor (do árabe) da poesia pré-islâmica no belíssimo Poemas Suspensos, erudito e ilustrado, Mussa, ao enveredar pela mitologia indígena, dialoga com um público de ficcionistas e leitores em língua portuguesa, torna prestigioso na esfera literária o imaginário indígena, ainda mal conhecido mesmo por quem ama os livros. Há todo um espaço a ser habitado por quem inventa, que é o de recriar a mitologia ou fazer nascer seus personagens. O livro de Mussa dialoga também com os novos escritores e leitores indígenas, que começam a pôr no papel os mitos transmitidos pela voz há muitas gerações. No caso dos mitos tupinambás, não dá para pedir aos narradores quinhentistas que expliquem, contem de novo. Temos que nos ater aos textos e virar detetives de uma versão "verdadeira" inalcançável, o que parece ser o desejo de Mussa. Podemos, porém, inspirados por eles, estender a documentação e análise das narrativas contadas ainda hoje no Brasil - agora, nas línguas indígenas e em português. Ainda podemos ouvir uma voz arcaica, pronunciada com espontaneidade por alguém do próprio povo, com uma força originária não se sabe de onde, uma arte que parece impregnar o corpo e o saber de quem fala. Nós, e agora também os escritores índios, a transformamos em letra, e teremos no futuro o mesmo drama que Mussa. Quando não pudermos ouvir, recriaremos o mito - o que de certa forma já fazemos quando o passamos do oral para o escrito. A mitologia dos povos contemporâneos falantes de línguas da família tupi-guarani tem muito em comum com os registros antigos. Os exemplos são inúmeros, como os filhos, na barriga materna, de pais misturados, o de pai legítimo enganando a mãe e fazendo-a perder o caminho; as árvores que crescem e salvam os heróis do dilúvio, preservando a continuação da vida humana; as onças entrelaçando-se à espécie que consideramos gente, as gerações e demiurgos que se sucedem e nos confundem, e muitos outros traços. Mais que bem-vinda a iniciativa de Mussa, ao julgar, com razão, que todos podemos compreender a mitologia indígena, que não deve ser assunto para supostos especialistas - e que todos teremos falhas de entendimento e ficaremos sempre perplexos. Vamos aprendendo com narradores ainda vivos a impregnar-nos da voz, e como eles, a tê-la dentro de nós, pela invenção, inspiração e amor às histórias. Mussa cita uma tradução do mito central escrito por Thevet que ele só leu depois de pronto seu livro, feita por Eduardo Navarro. Há ainda uma terceira tradução para o português, inédita, em tese de Benedito Prezia, também um erudito tupinólogo, conhecedor dos índios. A comparação das três, e da recriação de Mussa, é uma aventura que vale a pena e estimula a aprender tupi antigo. Quanto ao título do livro, refere-se a uma teoria do autor sobre o que os tupinambás pensavam, e sobre o significado da metamorfose ou incorporação dos seres humanos em onças. Sugeri "conversa de onças", porque podemos averiguar quem são as onças em cada povo oral que nos narre sua história, e o que os narradores pensam delas. Betty Mindlin é antropóloga, doutora pela PUC-SP, autora de Moqueca de Maridos e Tuparis e Tapurás, entre outros livros

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