Conversa de cordas

Em projeto inédito, as violas e a rabeca de Siba e Roberto Corrêa dialogam, fundindo referências universais do Nordeste e do Brasil[br]Central, num primoroso CD

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Por Lauro Lisboa Garcia
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O mineiro Roberto Corrêa, uma das maiores autoridades em viola caipira, como instrumentista e estudioso, traz em sua música referências do Centro-Oeste e do Sudeste brasileiro. O pernambucano Siba, compositor, músico e letrista dos mais brilhantes em atividade no País, um dos criadores do grupo Mestre Ambrósio, encontrou seu eixo na região da Zona da Mata. Com as bases na tradição e as antenas captando ondas universais, ambos vêm construindo obras fundamentais, de reconhecimento internacional. Em 2002, no CD Extremosa-Rosa, de Corrêa, eles gravaram juntos pela primeira vez. Ali brotava uma frutífera parceria que resultaria no álbum Violas de Bronze (independente), que terá o primeiro show de lançamento hoje, abrindo o projeto Rumos Convida, do Itaú Cultural. O convidado da dupla é o também violeiro, e não menos respeitável, Paulo Freire, paulistano. Até domingo haverá outros bons encontros no mesmo palco. Ouça trecho de Cara de Bronze Siba e Corrêa dedicaram o CD ao músico Edson Natale, por ter sido o primeiro a dar "nó nos arames de bronze". Natale foi quem propôs que os dois, que já tinham sido curadores do Rumos em 2000, se apresentassem juntos num projeto no Rio. "Já tínhamos uma história de colaborações, mas nenhum dos dois tinha imaginado essa possibilidade", observa Siba, que participou de três temas de Extremosa-Rosa, título de uma das faixas de Violas de Bronze. "A gente nunca discutiu objetivamente o que fazer e como se juntar, é uma coisa que veio de uma forma meio natural. Primeiro pela música, que você vai fazendo sem necessariamente ter de formular conceitos", prossegue. "É óbvio que a gente vem de regiões diferentes, mas tem muito a ver. As violas se comunicam, a rabeca se comunica com a viola, as cordas rurais do Brasil de maneira geral se comunicam muito." Siba confirma que tanto ele quanto Corrêa têm um vínculo profundo com a tradição, mas ao mesmo tempo uma relação "muito livre" de mesclar referências externas e modernas com essa tradição, cada um de seu jeito. "Penso da mesma maneira que Siba", diz Corrêa. Além dessa conversa natural entre as cordas, ele observa que "pela primeira vez se gravou essa combinação de instrumentos, a rabeca com a viola de cocho, a viola caipira com a viola nordestina". "Não foi esse o nosso propósito, mas acho que foi uma interação que ocasionou o encontro desses instrumentos também. Como soaria? Nós dois somos compositores, nossa principal expressão é a criação e a gente sabia que um mais um não seriam dois, seriam muito mais, porque a gente faria uma nova coisa. E de fato isso aconteceu." A única faixa assinada em dupla é a que abre o CD, Cara de Bronze, cujo personagem é um violeiro poeta que, "ruminando pensamentos" na varanda da fazenda, "passa a noite procurando a rima exata", coisa que Siba sempre encontra em primorosas letras, sempre ricas em imagens. É o caso de Big Brother Mental, em que supera outras já feitas sobre a relação do homem com o conhecimento e as tecnologias. Nas demais faixas, alternando temas instrumentais e canções, Siba e Corrêa versam, concreta ou abstratamente, sobre assuntos ligados à terra, à natureza e a mistérios da existência e do universo, como Nos Gerais (única parceria de Corrêa e Néviton Ferreira no CD), Boi Tristeza, Lume e Procissão da Chuvarada. Se do Mestre Ambrósio para a banda Fuloresta, a rabeca de Siba foi migrando para execuções cada vez mais discretas, aqui ela retoma sua posição de protagonista. O que mudou desta vez foi o canto, mais contido, justamente por adequação à sonoridade mais intimista. Como diz o músico, sem os metais e a percussão da Fuloresta, que faz música de rua, não é preciso "cantar pra fora". As músicas foram escolhidas pensando num conceito, diz Corrêa. "As peças instrumentais são discursivas, interagindo com a parte discursiva da poesia do Siba. É importante, por exemplo, o tema Nos Gerais, que fala desse sertão mineiro, na voz dele. Ficou curiosa essa combinação", diz. Para Siba, "fica um pouco restritivo" ler o trabalho da dupla só em termos de Nordeste e Centro-Oeste conversando, porque ambos têm uma formação muito mais abrangente, por ter ouvido e feito muita coisa diferente. Ambos, aliás, têm novos projetos em andamento. Corrêa lança em junho o CD Temperança, de canções, só de voz e viola. Siba continua com a Fuloresta e durante o ano prepara material para lançar em 2010, juntando trabalho de cordas com o que vem desenvolvendo com o pessoal de Nazaré da Mata. Serviço Rumos Convida. Itaú Cultural (240 lug.). Av. Paulista, 149, tel. 2168-1776. De hoje a dom., às 20 h. Grátis (retirar ingressos com meia hora de antecedência) Duas Letras BOI TRISTEZA (Roberto Corrêa) O boiadeiro vem Tangendo o gado/envem O aboio triste me faz lembrar você Tão longe de mim O boi saudade vem na frente E o desespero é o derradeiro boi A boiada entrando Na porteira aberta Do meu coração E lá na serra de arribada Vem despontando O boi tristeza e a solidão LUME (Beto Villares e Siba) Estrela, luz do firmamento Planetariando sem cordão Gravitariando em movimento Destrevariando a criação Talentosamente iluminando Sementarial da plantação Luminariando em fogo bento Desentrevecendo o coração

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